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Juristas analisam o impacto de canções populares e até óperas de vanguarda em sua formação

De Antonio Mariz de Oliveira à ministra Carmen Lúcia, magistrados mostram como a música e o direito têm a ver

Por João Marcos Coelho

Setenta e seis ensaios assinados por juristas, juízes, advogados e professores de Direito em pouco mais de 800 páginas. Todos escritos à flor da pele, durante a pandemia. Apesar do tamanho, Música & Direito é um livro fácil de se ler, interessante, muitas vezes essencial no momento político-institucional deflagrado em que infelizmente vivemos.

Como a música, “o Direito também está em toda parte”, escreve José Roberto de Castro Neves, organizador da coletânea, na curta introdução. “Por isso há um diálogo, muitas vezes íntimo e indissociável entre eles. Apesar da diversidade, ele detecta uma linha comum.” Todos demonstram em seus textos a consciência de que “o profissional de Direito, para exercer adequadamente seu ofício, deve, além de conhecer as regras técnicas, possuir uma formação humanística”.

Chico Buarque de Hollanda em Roma, 1969 Foto: Acervo Estadão

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A grande maioria dos ensaios gravita em torno de canções cujas letras impactam seus autores. Sintomaticamente, a grande maioria também se serve de músicas como musas de posturas ideológicas. Canções-símbolo de luta e resistência à ditadura de 1964 são privilegiadas: Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores, de Geraldo Vandré, Chico Buarque (Meu Caro Amigo, Cálice), Gilberto Gil (Aquele Abraço). Até Roberto Carlos – quem diria? – em 1971 saudava o então exilado em Londres Caetano Veloso, com Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos. Com direito a um samba hoje pouco lembrado, Senhora Liberdade, de 1971, composto por Wilson Moreira e Nei Lopes.

Estamos, portanto, no reino da palavra. Um dos mais líricos é o da ministra Carmen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, em torno de Maria, Maria, composta por Milton Nascimento e Fernando Brant, para uma coreografia do grupo Corpo de Belo Horizonte. A ministra retorna aos seus 22 anos em Montes Claros, cidade natal. “Canto e encanto de viver pautam a marcação da existência.” Ela não esquece aquele espetáculo de dança e música, “era pura denúncia na noite de 1976. Nem era uma apresentação, era uma delação (...). Negra Maria de tantas cores, todas as mulheres do mundo bailando no corpo dançante do grupo. A dor, a mais doída, não nega a beleza. O tempo brasileiro não era de alegrias. Aquele tempo nem era dos brasileiros. Era, isso sim, opressão e medo”.

A ministra do Supremo Tribunal Federal, Carmen Lúcia Foto: Alejandro Zambrana/TSE

Noel Rosa é lembrado por seu sempre atual samba Onde Está a Honestidade? em artigo do criminalista Antonio Cláudio Mariz de Oliveira. Edson Aguiar de Vasconcelos resgata o lado de letrista de Jorge Ben Jor, em geral cultuado apenas como “compositor, cantor, instrumentista”. Escolhe a canção Curumim Chama Cunhatã Que Eu Vou Contar, mais conhecida pelo verso “todo dia era dia de índio”. O advogado carioca Daniel Homem de Carvalho recorre ao filósofo Nietzsche associando-o aos versos de Juízo Final, de Nelson Cavaquinho.

É ótima a leitura que Pedro Paulo Salles Cristofaro, professor na PUC-RJ, faz de Sabiá de Tom e Chico Buarque e Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores, de Geraldo Vandré, no Festival Internacional da Canção de 29 de setembro de 1968, no ginásio do Maracanãzinho. Cito dia, mês e ano porque, ainda não sabíamos, estávamos todos no País a três meses da edição do famigerado AI-5. A vaia monumental que Tom e Cybele e Cynara, duas das meninas do Quarteto em Cy, levaram foi motivada por terem deixado a favorita Caminhando e Cantando de Vandré em segundo lugar. Naquele momento, ninguém no Brasil tinha dúvida de que se premiara a canção errada. Cristofaro corrige afirmando que a canção de Vandré “era direta, dois acordes, sol maior e lá menor, empolgante, um hino com a certeza revolucionária (...) Sabiá conta uma história universal que traz um dos maiores desafios para o Direito em nossos e talvez em todos os tempos. A história dos que partem de seus países, por motivos políticos, ou fugindo de guerras, ou fugindo da fome, ou levados à força, e não sabem se e quando poderão voltar”.

Montagem da ópera ‘Moses und Aaron', de Schoenberg Foto: Ludwig Olah

E, ao falar dos exilados que fugiriam em grandes levas, Sabiá é “a voz que canta e espera voltar para sua terra, mas sabe que o lugar de onde partiu não é mais o mesmo”. Sintomaticamente, em 1969, Gil mandava de Londres, na condição de exilado como Caetano, Aquele Abraço nos que haviam ficado, enquanto a sabiá canta que “sei que vou voltar”: “A canção lírica de 1968, a canção alienada, a canção vaiada”, escreve Cristofaro, “encontrou, ela própria, o seu lugar, deixando o exílio ao qual tinha sido condenada, retratando a dor e a esperança dos que agora voltavam a ouvir a sabiá”. A parte final do artigo faz uma oportuna e atual análise da legislação e estatuto jurídico dos exilados.

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Cem páginas adiante topo com o complemento ideal, um artigo inflamado de Simone Schreiber sobre outra gema, Haiti, composta em 1993 por Caetano e Gil. Ela vai além da letra – “O Haiti é aqui” –, ao detectar corretamente que “a melodia não é óbvia, pode até causar certo desconforto; aliás, parece ser mesmo essa a ideia. A letra é quase toda falada, culminando com frases cantadas, lindas na voz de Caetano. A melodia é dele e de Gil (...). Nos anos 1990 como hoje é tudo tão atual que dói”.

Em seguida analisa a legislação e casos célebres de assassinato de um menino de 10 anos, da menina também com 10 anos grávida que enfrentou “uma odisseia para interromper a gravidez” e a chacina de 111 presos em 1992 no Carandiru. Belo artigo.

Gil, Caetano, Gal, Chico e outros artistas da MPB tiveram gravações e composições vetadas pela ditadura; um dos exemplos marcantes é ‘Cálice’, de Gil e Chico Foto: Acervo Estadão

Há também olhares surpreendentes e interessantes para além da música brasileira. Em Direito, Música e Não Música, Tércio Sampaio Ferraz constrói seu texto como uma sonata em quatro movimentos, intercalando entre os dois últimos duas óperas: Andrea Chénier de Umberto Giordano e Moisés e Arão de Arnold Schoenberg. No Allegro non troppo, un poco maestoso (a expressividade da música) inicial, por exemplo, ele se pergunta: qual é a relação entre música e direito como formas de comunicação. “Falar é uma ação para outrem (...) exige que os sujeitos que se comunicam dominem a língua; duas pessoas, falando idiomas diferentes, propriamente não falam; por isso precisam de tradução. Já a música, ao contrário da fala, não exige este domínio.” No Adagio molto e cantabile – Andante moderato”, compara o “ouvir” música com o “julgar” no Direito: “A música, como o Direito, é um mistério, o mistério do princípio e do fim da sociabilidade humana”. A inclusão de Andrea Chénier é previsível, mas surpreende a de Moisés e Arão, ópera inacabada de Schoenberg, o campeão da música serial, compositor muito falado e comentado, mas raramente ouvido.

Ele contrapõe no universo do Direito o significado de uma ótima sacada de Schoenberg: Moisés está voltando da montanha onde recebeu a tábua dos Dez Mandamentos e vê que seu irmão Arão já atendeu aos reclamos da comunidade de que o profeta não retornaria, e mandou construir um bezerro de ouro a ser adorado: Arão e o povo cantam, enquanto Moisés (a razão) apenas fala. Razão versus emoção. Aqui Schoenberg volta a usar o canto falado ou fala cantada (em alemão, Sprechgesang), recurso com o qual estarreceu o mundo musical em 1912, com seu Pierrot Lunaire. Por isso, segundo Tércio, “a lei é razão, é intelecto, é falada para ser compreendida e obedecida”. E pergunta-se concluindo: “É possível, para o ser humano, ser racional e sensível ao mesmo tempo? Falar e cantar? Compreender leis com a razão e obedecer a elas com a emoção?”. Não dá para acreditar que alguém obedeça a uma lei “com emoção”, mas esta é outra história.

Ensaio dos músicos que participarão do Festival Quem Tem Medo de Schoenberg  Foto: Werther Santana/Estadão

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Surpresa ainda maior é o artigo do advogado Marcelo Barbosa, Thelonious, Samba de Uma Nota Só. Ele começa sugerindo que “seria bom se a redação jurídica também fosse, ao menos majoritariamente, simples e elegante (...) nada se perde quando o texto traz apenas o conteúdo necessário, em linguagem clara e direta”. Insurge-se contra o que chama de “patologia redacional que se verifica em diversos tipos de textos jurídicos”. Lembra os versos de uma canção conhecida: “Quanta gente existe por aí que fala tanto / E não diz nada / Ou quase nada?”.

Os versos são de Samba de Uma Nota Só, de 1963. Barbosa associa a canção de Tom Jobim com letra de Newton Mendonça a uma das cerca de 80 composições instrumentais do pianista de jazz Thelonious Monk (1917-1982), que levam seu nome, Thelonious. De 1947. Ambas repetem a mesma nota por oito compassos. Descartando a hipótese de serem “exercícios fúteis”, ele as qualifica como casos-limite “do bom uso da técnica musical para ironizar os adeptos do excesso”.

Reprodução Veto da censura prévia à música "Pátria amada, idolatrada, salve, salve", de Geraldo Vandré. Foto: MARCOS D'PAULA

Barbosa remete a um texto do crítico de jazz norte-americano Ben Ratliff que clareia as intenções de Monk (as de Tom sabemos de sobra): “Vamos supor que ele colocou seu prenome no título como um poema sinfônico sobre si mesmo. Poderia descrever o mundo ao seu redor mudando rapidamente, enquanto ele permanece o mesmo, uma única nota, repetidamente”.

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Tão fanático por Monk quanto Marcelo Barbosa, adoro essa comparação de um tema tão simples em seus 3 minutos e meio quanto um “poema sinfônico”, gênero grandioso por definição.

Sua conclusão é cristalina. “Certa vez ouvi que talvez tenhamos perdido a capacidade de entender o que é colocado de forma descomplicada, talvez por associarmos o simples ao simplório.” Nesta altura, nosso jurista jazzista pede socorro a uma frase de Groucho para concluir com clareza cristalina seu artigo em defesa da simplicidade na redação jurídica: “Uma criança de 5 anos conseguiria entender isso? Alguém, por favor, vá buscar uma criança de 5 anos!”. l

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