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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|A memória que salva

Caso tenha ocorrido o dilema no afundamento do navio, Camões salvou o amor da sua vida: sua obra

Atualização:

O poeta Camões amou uma mulher chinesa, Tim Nam Men. O português a chamava de Dinamede, uma entidade mitológica. Ela morreu afogada no delta do Rio Mekong. A memória da doce oriental despertou versos inspiradíssimos como “Ah! Minha Dinamede! Assim deixaste / Quem não deixara nunca de querer-te”. Um dos mais famosos sonetos da nossa língua também nasceu das saudades do poeta por ela: “Alma minha gentil que te partiste/ tão cedo desta vida descontente,/ Repousa lá no céu eternamente/ E viva eu cá na terra sempre triste”. 

Camões se tornou um sinônimo de perfeição e amor pela poesia em língua portuguesa Foto: Real Gabinete Português

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Quem ama a língua portuguesa já admirou os versos que buscam a forma que Petrarca consagrara na Itália. Ficam ainda mais interessantes acompanhados de uma narrativa tradicional: durante o trágico naufrágio, Camões teria tido de escolher entre sua amada que se debatia nas ondas e o manuscrito dos Lusíadas. Ele teria resgatado a aventura de Vasco da Gama e deixado que Dinamede se tornasse uma musa defunta. 

O fato é estranho. Se Camões estivesse na água com os versos manuscritos, mesmo que ele os segurasse firmemente, teriam sido borrados e inutilizados. Faltavam alguns anos para o surgimento do plástico impermeável. 

Um amigo meu dizia que os filmes de Kurosawa eram melhores para serem discutidos na pizzaria do que vistos. Talvez seja verdade para quase tudo. Recordar e recriar, ao narrar a memória, é sempre mais interessante do que a experiência em si. Incidentes viram humor, e amores são aumentados: nosso cérebro é uma máquina de ficção talentosa. Se o poeta - com sua amada asiática - tivesse voltado a Lisboa, teria sido aceito na sociedade do século 16? Ele morreu muito pobre. Uma esposa zelosa teria colaborado para um destino melhor? O campo do “E se...?” não existe em história, todavia é maravilhoso. 

Duas lições fundamentais. A primeira é que, caso tenha ocorrido o dilema no afundamento do navio, Camões, afinal, salvou o amor da sua vida: a sua obra. A segunda e mais ampla: a memória existe para asfaltar os buracos desagradáveis do real. O que é fragmentado, irregular, sem sentido lógico e cheio de contradições, alguns anos depois, vira uma linda história, com irretocável coesão textual, na nossa exposição. Nossas glórias e desventuras precisam de um tempo de sedimentação para emergirem mais palatáveis. Um dia, ao entardecer sobre os muros do castelo de São Jorge em Lisboa, o escritor já tranquilo e saudoso poderia suspirar por sua amada tragada pela “grande máquina do mundo”, tomando a ideia maravilhosa do canto dez dos Lusíadas. A memória é um engenho reverso que inventa esperança pretérita.

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Opinião por Leandro Karnal
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