‘Frio o Bastante Para Nevar’: Romance premiado de Jessica Au narra viagem de mãe e filha ao Japão

Romance que levou o inédito Novel Prize e inspiração em autoras como Annie Ernaux, Rebecca Solnit e Simone de Beauvoir, tem nas descrições seu grande trunfo

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Por Mateus Baldi
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Após publicar seu primeiro romance, a australiana Jessica Au passou dez anos escrevendo, mas nada “funcionou de verdade”. Um dos contos produzidos nessa época, contudo, ganhou força: a história de mãe e filha em viagem ao Japão. Reescrito do zero, ele se tornou o romance Frio o bastante para nevar, primeiro vencedor do Novel Prize, organizado pelas editoras New Directions, Fitzcarraldo e Giramondo.

A escritora Jessica Au foi a primeira vencedora do Novel Prize, com seu livro 'Frio o bastabte para nevar'. Foto: Nicholas Purcell/Divulgação

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Apesar de curto – não chega a 100 páginas –, a profundidade é a sua grande marca. Publicado no Brasil pela Fósforo em tradução de Fabiane Secches, esse mergulho que Au emprega à dinâmica mãe e filha tem influências de nomes como Annie Ernaux, Rebecca Solnit e Simone de Beauvoir. Seu estilo simples e direto acaba por tensionar as memórias e as descrições da narradora até que se fundam na paisagem.

Na entrevista a seguir, Jessica Au comenta seu processo criativo, a opção pela écfrase e a influência de suas idas ao Japão na escrita de Frio o bastante para nevar.

Há um hiato de 10 anos entre seu último romance e ‘Frio o bastante para nevar’. Você queria fazer uma pausa? Você esteve planejando esse livro?

Sempre estive escrevendo, mas foi mais o fato de que durante um tempo nada funcionou de verdade. Escrevi alguns contos, mas eles não pareciam ganhar vida como eu queria. Houve apenas um – sobre mãe e filha em viagem ao Japão – que eu senti que poderia ter algo, então decidi voltar a ele e reescrever do zero. De algum modo, porém, com aquela jornada como uma linha-mestra, e dentro do fluxo de consciência da filha, muitas das outras coisas sobre as quais eu vinha tentando escrever começaram a se encaixar. Essas se tornaram as digressões – sobre o período da filha na universidade, seu trabalho lá atrás como garçonete, seus sentimentos sobre o mundo literário e artístico, as memórias de sua irmã e por aí em diante.

O romance captura um período muito específico na relação entre mãe e filha. Como você pensou essas duas personagens e a melhor maneira de contar essa história?

Era mais um processo reverso de indagar indiretamente certas questões que eu tinha, ou o que parecia mais difícil de dizer, e seguir esses instintos. Eu tinha lido livros como “Uma morte muito suave”, de Simone de Beauvoir, “I remain in darkness” (Permaneço na escuridão, sem tradução para o português), de Annie Ernaux, e “Quem matou meu pai”, de Édouard Louis. Cada um desses livros explorava a morte de um pai ou mãe, mas também a tarefa de vê-los como alguém dentro de uma história – o que a época e as circunstâncias lhes permitiram ser ou não ser. Fiquei com algo dessas ideias e queria, à minha própria maneira, pensá-las através dessa relação em particular, na qual mãe e filha são intimamente ligadas, mas também separadas por nacionalidade, língua e memória. Eu sentia também que havia uma pungência em pensar nisso pelos olhos de uma filha adulta – onde também ocorre uma certa inversão de papéis, que envolve ambos dever e cuidado, e em que você começa a entender a verdadeira natureza do tempo.

Capa de 'Frio o bastante para nevar', segundo romance de Jessica Au. Foto: Editora Fósforo/Divulgação

A história se constrói em um estilo digressivo, desvelando as muitas histórias que uma cena ou um gesto escondem. Isso exige um grande esforço de descrição – paisagens, pinturas, gestos. Para você, quão importante é a descrição?

A descrição ou a beleza podem ser um grande prazer durante a leitura, mas eu tentei, onde conseguia, lembrar que qualquer coisa descrita deve estar a serviço da história também, e não apenas em causa própria. Gosto da escrita simples, direta. Então, mesmo que eu descrevesse a vista das montanhas como uma pintura na tela, ou um trabalho de arte contemporânea como uma ilusão, elas também diriam algo sobre a própria narradora – sobre como ela vê o mundo através da arte, mesmo sem nunca querer ser uma artista, ou a respeito da natureza instável da memória e da narrativa. Gosto como esse tipo de écfrase (ekphrasis) pode amplificar o sentido da coisa descrita, e talvez também dar algumas pistas sobre como a história pode ser lida.

‘Frio o bastante para nevar’ segue mãe e filha, lançando luz nas rachaduras do relacionamento entre elas. Você disse que andou lendo Annie Ernaux, Simone de Beauvoir e Rebecca Solnit enquanto o escrevia. Que papel essas leituras – e essas mulheres – desempenham na sua literatura?

Com Ernaux e de Beauvoir há essa crueza e autenticidade que vem das qualidades existenciais e autobiográficas dos seus trabalhos. Quando as leio, sinto as questões de filosofia e as questões de ficção sendo unidas. Também há algo a respeito do confessional que impele o leitor a continuar, mais que qualquer enredo. Eu li Solnit mais ou menos na época em que escrevi o primeiro rascunho do conto de mãe e filha, e embora tenha mudado muito desde então, acho que alguma coisa da qualidade da sua reportagem reflexiva certamente moldou a versão inicial, e talvez ainda esteja lá.

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Há muitos detalhes nas suas descrições do Japão. Você já esteve lá? Você foi especificamente para escrever este livro?

Eu eventualmente acabei indo ao Japão, embora não especificamente para escrever Frio o bastante para nevar. Fui três vezes ao longo de alguns anos e, claro, muitos dos lugares e experiências dessas viagens depois entraram no livro, geralmente de modo um pouco diferente. A caminhada que a narradora faz, por exemplo, quando deixa sua mãe por um breve período, saiu em parte da trilha de Nakasendo entre Tóquio e Quioto. E muito das artes – James Turrell, Monet – veio de mostras ou obras que vi no Japão. Estar lá também me trouxe de volta muitas memórias da Ásia e da minha extensa família lá, o que, é claro, a narradora também sente.

Frio o bastante para nevar

96 páginas

R$64,90

Editora Fósforo

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