Nélida Piñon encontrou na ópera e na música inspiração para romances

Em ‘A Força do Destino’ e ‘A Doce Canção de Caetana’, obras do italiano Giuseppe Verdi servem como ponto de partida de uma discussão sobre o feminino

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Por João Luiz Sampaio

A música clássica e a ópera tiveram papel fundamental na trajetória da escritora Nélida Piñon. Desde a infância, ela frequentava o Teatro Municipal do Rio de Janeiro. O pai a esperava do lado de fora, ela contava. E o caminho de casa se dava em meio a discussões sobre o que ouvira nas óperas e concertos.

Mais tarde, escritora celebrada, ela tinha um ritual: escrevia ao som dos clássicos. Tchaikovsky era companheiro constante, mas não obrigatório. “Se preciso que meu coração bata mais forte, se quero me arrebatar para escrever uma cena mais caliente, ouço Wagner, Schubert ou Verdi”, disse em uma entrevista.

Ensaio da opera Don Carlo, de Verdi, compositor que encantou a escritora Nélida Piñon Foto: Evelson Freitas/Estadão

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Mas a ópera também se misturou à sua própria escrita. No romance A Força do Destino, recontou de maneira original a história da ópera de Verdi. Em A Doce Canção de Caetana, evocando a figura da cortesã, refere-se a La Traviata do compositor italiano. Livro de reminiscências, Uma Furtiva Lágrima empresta o título de uma ária da ópera O Elixir do Amor, de Donizetti – e traz um relato de sua visita ao teatro construído por Richard Wagner na cidade de Bayreuth, no norte da Alemanha.

Pelo seu enredo, A Força do Destino é uma das mais problemáticas óperas de Verdi, que passou anos revisando a obra depois de sua estreia em São Petersburgo, em 1862. É baseada em Don Álvaro o la Fuerza del Sino, escrita em 1835 pelo Duque de Rivas, que se inspirou em um texto do alemão Friedrich Schiller.

A história é uma confusão. Álvaro ama Leonora, mas o casamento não agrada a família da moça, cujo pai ele mata acidentalmente. Enquanto é perseguido por Don Carlo, irmão de Leonora, Álvaro assume a persona do estudante Pereda, do militar Don Federico Herreros e acaba em um mosteiro, onde, finalmente, é descoberto. Um duelo se segue. Mortalmente ferido, Alvaro reencontra Leonora. E os dois morrem juntos.

Mais do que recontar a história da ópera em forma de romance, ela a atualiza, colocando a si própria na narrativa, como uma cronista a quem cabe não apenas narrar, mas também comentar

Pode parecer estranho que essa narrativa tenha interessado tanto a uma artesã da narrativa como Nélida Pinõn, mas talvez seja justamente o estranhamento o ponto de partida da escrita. Mais do que recontar a história da ópera em forma de romance, ela a atualiza, colocando a si própria na narrativa, como uma cronista a quem cabe não apenas narrar, mas também comentar. E com quem os personagens também conversam, colocando-se com relação ao modo como a escritora reescreve suas trajetórias.

Nesse processo, ela ora celebra, ora se cansa da história e da tragédia. Os personagens, que na ópera representam o trio herói-vilão-heroína, têm seus papeis implodidos. E ela faz isso com humor, recorrendo à paródia com a qual é capaz de repensar à luz de seu tempo o original, de um ponto de vista que é pós-moderno tanto quanto feminista.

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Cortesã

A atriz Monica Bellucci interpreta a diva em 'Maria Callas: Cartas e Memórias' no teatro de Heródes em Atenas  Foto: Alkis Konstantinidis/Reuters

Em A Doce Canção de Caetana, a ópera também aparece como parte de uma mistura a dar amplo significado à história da protagonista, a atriz Caetana, que retorna à sua pequena cidade, Trindade, após duas décadas, disposta a se vingar do antigo amante Polidoro, a quem recorre para que patrocine um novo espetáculo.

Caetana é apaixonada pela voz de Maria Callas. A soprano grega teve vida atribulada, sofreu e morreu por amor. Vem daí a identificação com Caetana? Relação mais rica se dá quando descobrimos que o espetáculo que ela pretende produzir é La Traviata, ópera de Verdi sobre a cortesã que, vítima do preconceito da sociedade, vê sua última tentativa de amar ser destruída, resignando-se perante a morte.

“Entre a voz e o eco artístico, há uma performance feminista que se opõe ao lugar de opressão da mulher e propõe um lugar de revisão que atualiza as heranças do passado. Assim, a resistência da mulher, que não se dobra aos modelos impostos, constitui-se em um espaço politizado da ficção de Nélida Piñon”, escreve Carlos Magno Gomes, da Universidade Federal de Sergipe, em sua análise do romance.

Paixão que irradia

A escritora Nélida Piñon durante sessão de fotos cedida ao Estadão, em seu apartamento no bairro da Lagoa, zona sul do Rio.  Foto: Wilton Junior/Estadão

Talvez a ópera do século 19, que legou às personagens femininas destino ligado acima de tudo ao desejo masculino, tenha sido por isso mesmo terreno fértil para a reflexão da autora sobre o lugar da mulher. Mas a ópera também tinha para ela um significado profundamente pessoal.

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Em Uma Furtiva Lágrima, a escritora relembra sua visita a Bayreuth, onde, com o dinheiro do Rei Ludwig II da Baviera, Richard Wagner construiu um teatro para realizar a estreia da tetralogia O Anel do Nibelungo.

“Desfruto de sua música, esperando que algum acorde insuspeito ou alguma frase melódica abale de repente minha vida tranquila e a quebre em mil pedaços, sob os efeitos da paixão que irradia. Principalmente quando estou instalada na plateia do teatro, em um assento de madeira dura, sem estofamento nem braços, que o próprio autor idealizou com a intenção de impedir o sono do espectador”, escreve.

O compositor Richard Wagner, autor de óperas incontornáveis da música clássica alemã Foto: Acervo Estadão

“Imersa na atmosfera mítica de Wagner, assumo uma nova dimensão. É fácil para mim deixar os limites da literatura e me tornar Isolda, ou mesmo Brünhilde. Qualquer papel serve ao meu propósito de pegar emprestado dessas heroínas as peças essenciais para formar o mosaico de seus personagens. Com que alegria sublime pisaria na caixa wagneriana para contribuir com sua obra. Concentrada em um papel que me faria esquecer o público disposto a me crucificar no final do dia de cantoria. O delírio resultante de cada nota que emiti fortaleceria ou profanaria a pessoa que sou”, continua.

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E vai além. “Dado o meu empenho em interpretar o mundo, coloco a minha imaginação a serviço daquilo que ditam as óperas que assistirei nos próximos dias na companhia de amigos. Nessa época alemã, escolhi ler O Pensamento de Montesquieu, de Carmen Iglesias. O historiador espanhol me ajuda a entender o desgoverno do mundo e os efeitos do pensamento francês na atualidade. Enquanto isso, termino minha obsessão verbal aplicando meu espírito arcaico à consulta daqueles mitos que exigem minha hospitalidade. Os imortais que também habitam Wagner reforçam as releituras de Joseph Campbell, Machado de Assis e Álvaro Cunqueiro; todos eles, intérpretes do imaginário ocidental.” Assim como ela.

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