As últimas semanas do ano foram bastante agitadas para o casal de quadrinistas brasileiros Bilquis Evely e Matheus Lopes. Em um dia cotidiano de trabalho, imersos em pranchetas de desenhos e cartelas de cores, começaram a receber centenas de marcações nas redes sociais. Com passagens por títulos como Mulher-Maravilha e O Sonhar, eles foram avisados por fãs de todo mundo que a graphic novel Supergirl: A Mulher do Amanhã se tornaria o segundo filme do DCU, o novo universo cinematográfico da DC Comics.
Com estreia prevista para 2026 e com Milly Alcock (A Casa do Dragão) no papel principal, Supergirl: A Mulher do Amanhã será um marco no cinema de super-heróis, porque pela primeira vez um estúdio de cinema está adaptando uma história fechada para as telas, e não realizando um pastiche de mitologias construídas nos últimos 95 anos, desde que Kal-El, o Superman, voou mais rápido que um pássaro, uma bala e um avião pela primeira vez. Claro, HQs adultas como Watchmen, V de Vingança e Marcas da Violência tiveram o mesmo destino, mas havia este ineditismo relacionado aos supers tradicionais.
“Descobrimos que fariam o filme pelo Twitter, como todo mundo”, conta Evely, desenhista da HQ. “Entramos em choque, porque não é tão comum adaptar uma graphic novel exatamente. Geralmente pegam um elemento daqui, outro dali, e fazem um filme.”
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Supergirl: A Mulher do Amanhã, lançada recentemente em um volume luxuoso em capa dura pela Panini Comics, não é uma história de heróis tradicional. Decidida a comemorar seu aniversário de maneira diferente, Kara Zor-El deixa a Terra em busca de um planeta de Sol vermelho, um inibidor de seus poderes de invencibilidade, para conseguir tomar um porre em paz. Bêbada neste confim medieval do universo, ela conhece Ruthye, uma garota que presenciou o assassinato de seu pai pelas mãos do mercenário Krem dos Montes Amarelos, e então decide ajudá-la em sua busca por justiça e vingança através das galáxias. A história que deve chegar aos cinemas é essa, com uma única adição: a participação do anti-herói Lobo, que será vivido pelo ator Jason Mamoa, que não será mais o Aquaman.

Melhor identificada como uma história de capa e espada aos moldes de Conan, o Bárbaro, a graphic novel foi indicada ao Eisner de melhor minissérie em 2022, mas nem uma aparição no “Oscar dos quadrinhos” parecia garantir um sucesso da história da Supergirl: “Embora tenha sido aclamada pela crítica na época, A Mulher do Amanhã não tinha feito grandes números em termos de vendas”, lembra Lopes, o colorista da série. “Depois do anúncio da adaptação, a minissérie esgotou em todos os lugares no Brasil e no exterior, e a DC Comics teve que correr atrás para fazer uma nova fornada.”
Criada em 1958 por Otto Binder e Curt Swan, Kara Zor-El teve sua primeira aparição em Action Comics #252 e algumas fases emblemáticas nas HQs até ser morta pela DC Comics na sétima edição de Crise nas Infinitas Terras, um mega evento que serviu para simplificar 50 anos de cronologia da editora norte-americana. Outras personagens vestiram o manto da heroína desde então, até que Kara fosse reinserida na cronologia em 2004: “Para mim, o convite para desenhá-la foi até meio despretensioso. Na época, [o roteirista] Tom King quis assumir a personagem porque as vendas estavam baixas, e a editora estava para cancelar o título, que historicamente vende pouco”, lembra Bilquis “O editor me mandou uma breve sinopse da história, ela perdida no espaço, e gostei muito do tema.”
Dupla dinâmica
Com uma carreira que começou no título nacional Luluzinha Teen e sua Turma, em 2009, Bilquis Evely entrou para o mercado norte-americano pouco tempo depois. Após passar por títulos pulp da pequena editora Dynamite Entertainment, entre eles O Sombra, foi convidada para integrar as fileiras da DC Comics em um reboot do título Sugar and Spike em 2016, assumindo o título da Mulher-Maravilha logo em seguida. Já Matheus Lopes começou a colorir HQs por necessidade: “Descobri a profissão através de fóruns do Orkut. Queria colorir os zines que eu fazia, com minhas próprias histórias em quadrinhos e mangás. Meu interesse surgiu para fazer capas mais bonitas, e entrei a fundo na colorização digital por meio de tutoriais, de outras pessoas compartilhando conhecimento. Fui aprofundando no hobby, passava muito tempo colorindo, até que descobri em uma outra comunidade que existiam brasileiros que trabalhavam para o mercado americano de quadrinhos de super heróis”, conta.

O casal se conheceu em 2015, quando fizeram juntos algumas capas para a Valiant Comics, uma pequena editora surgida nos anos 1990 que passava por um relançamento na época. A relação profissional se firmou a partir dali, e Bilquis o chamou para ser sua dupla criativa nas HQs do Sonhar, baseadas no universo de Sandman, do autor britânico Neil Gaiman. Foram mais de 30 edições mensais até que viesse o convite para A Mulher do Amanhã. “Foi um momento que coincidiu com uma certa maturidade artística minha. Depois de três anos no Sonhar, havia desenvolvido várias habilidades para adaptação e criatividade, estava me sentindo madura para fazer, para agregar à história. Então, dei algumas ideias de atmosfera, de tom também”, ela diz.
O relacionamento entre os dois só evoluiu para um romance durante a produção de Supergirl e, há dois anos, Evely e Lopes dividem o mesmo lar. Eles são discretos em relação ao tema, embora Lopes afirme: “Com a mudança do nosso relacionamento pessoal, a maneira de trabalhar não se alterou em nada”. Quando não está colorindo as histórias de Evely, Matheus tem dividido seu tempo entre os títulos Batman & Robin; Batman: Gargoyle of Gotham, Void Rivals, que se passa no universo dos personagens de Transformers, e a HQ independente The Seasons, que foi lançada pela Image Comics em janeiro, nos Estados Unidos.

Deuses e monstros
Se os heróis da DC Comics são normalmente comparados a deuses – diferente dos humanos cheios de falhas da Marvel –, a Supergirl de Evely e Lopes é imperfeita. Ela tem cabelos curtos e cacheados, é nariguda, com expressões faciais que inspiram menos coragem e mais luto, tristeza e dor. Enquanto acompanha Ruthye em sua busca por vingança contra o assassino de seu pai, Kara Zor-El viaja pelas galáxias tentando se encaixar em um universo onde Krypton, sua terra natal, não existe mais. É aí que o talento da dupla brilha mais: “Porque em cada página ela está em um lugar diferente, um mundo diferente, com alienígenas diferentes. Era muito divertido decidir que aquele alienígena seria assim, que outros seriam engraçadinhos. Mas foi um processo meio natural também, porque, embora os prazos fossem bons, não tínhamos tanto tempo, não dava para passar semanas desenvolvendo uma ideia. Foi uma espécie de improvisação que deu certo, nos sentimos confortáveis para fazer”, Evely lembra.
Lopes também pôde experimentar no título. “Parando para pensar, fiz uma coisa que não estava errada, mas sem querer mudei o tom de azul do uniforme da Supergirl. Me acostumei a fazê-lo mais claro, nem sei por que. Para mim era natural, mas quando você olha para outros coloristas clássicos do Superman, são tons mais escuros, ultramarinos”, ele diz. Suas cores são fundamentais para definir mundos destroçados ou prósperos, civilizações avançadas ou primitivas, com destaques para o planeta de Sol verde, a mesma irradiação da kryptonita, e o fim do contínuo espaço-temporal, quando Kara dobra as noções da realidade para salvar a si mesma do vilão Krem.

A sinergia entre Evely, Lopes, o roteirista Tom King – um dos mais requisitados dos comics da atualidade – e o letrista Clayton Cowles foi tanta que durante a produção de Supergirl, King convidou os brasileiros para criarem uma história autoral e original. O resultado foi a HQ de fantasia Helen de Wyndhorn, lançada pela Dark Horse Comics (a casa do Hellboy) no segundo semestre de 2024, com publicação já anunciada pela Suma Editora, um selo da Companhia das Letras, para julho de 2025.
O trabalho, tão fantástico e impressionante quanto A Mulher do Amanhã, é mais uma homenagem ao gênero da fantasia: “ Quando King me convidou, disse a ele que queria pensar, pesquisar referências de coisas que eu sentia de fazer, para então criar. Comecei a ir atrás de ilustrações de livros antigos e de anúncios de publicações de fantasia. Era uma época em que ele estava lendo Conan por causa da Supergirl, e também O Morro dos Ventos Uivantes. Acho que ele conseguiu relacionar todas essas coisas naquele momento, tornando a concepção um romance gótico misturado com temáticas de capa e espada”, ela explica.
Em seis edições, Helen de Wyndhorn conta a história da jovem Helen, cujo pai foi o maior autor de histórias pulp dos anos 1930, antes de se suicidar. Obrigada a retornar para a propriedade rural de seu avô, ela descobre que os personagens e criaturas concebidos por sua família não são tão ficcionais assim. Em um encontro de dois mundos, o real e o fantástico, Helen navega por cenários como montanhas, florestas e até o fundo do mar enquanto busca uma cura para suas próprias dores. O roteiro ficou pronto em pouco mais de um mês, mas as HQs demoraram quase dois anos até serem publicadas. “Foram muitas pesquisas, porque qualquer objeto precisava ser pesquisado, desde uma mesa de cabeceira até as roupas das personagens. Ao todo, fiquei três meses só estudando, buscando referências visuais, construindo os personagens. Foi muito tempo para encontrar a Helen. Eu tinha uma ideia na cabeça, mas quando desenhava, não chegava onde queria.”
Com Helen de Wyndhorn, Bilquis Evely consolida de vez seu estilo artístico de linhas contínuas e movimentos vivos dos personagens. Já as cores de Matheus deixam de lado as paletas vibrantes da Mulher do Amanhã, optando por tons mais terrosos, fechados e quase lavados, remetendo às histórias publicadas em folhetins baratos dos anos 1930 e 1940. Mas há semelhanças, como revela Matheus: “Nunca renderizo os rostos feitos pela Bilquis, tento deixar uma coisa mais limpa, porque seus desenhos são muito detalhados.”
Com o sucesso de A Mulher do Amanhã e o anúncio da adaptação cinematográfica, Bilquis e Matheus experimentaram momentos de reconhecimento por parte do fãs durante a última CCXP, que aconteceu em São Paulo no início de dezembro, quando centenas de fãs fizeram fila para conseguir autógrafos, sketches e uma palavrinha com seus ídolos. “É muito legal ver o carinho do público brasileiro. Falei isso para muita gente lá na CCXP, porque ficamos tanto tempo quietinhos trabalhando, a vida de quadrinista é muito solitária, e só temos feedback mesmo quando lança a revista. Voltei de lá até mais animada, porque muitos ficam ali nos contando o que significou ler determinado trabalho”, conta.
Alçada ao patamar dos grandes desenhistas em atividade no mundo das HQs desde antes de desenhar a Supergirl, Bilquis revela ter chegado em um momento da carreira que pode escolher naquilo que vai trabalhar em seguida. “Minhas escolhas são mais sobre a história combinar ou não comigo, se tenho algo a acrescentar”, revela. Depois de tanto tempo fazendo Helen de Wyndhorn, ela diz que ainda não decidiu quais serão seus próximos passos: “Estou naquele momento de reflexão de novo. Foi um longo caminho de trabalho, e sempre gosto de parar um pouco, tirar umas férias, recarregar as forças, para depois pensar no que fazer.”
Supergirl: A Mulher do Amanhã
- Panini Comics; 280 páginas (R$ 159,90)