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Livro narra o processo que definiu o destino dos escritos de Kafka

Batalha judicial foi travada entre herdeira legal de Max Brod e bibliotecas da Alemanha e de Israel

Por André Cáceres
Atualização:

Uma entidade paira sobre filas de banco, cartórios, repartições públicas, balcões de crediário. A figura evanescente do escritor checo Franz Kafka se tornou a divindade suprema da burocracia. Se o iluminismo tentou categorizar e racionalizar um mundo desencantado, o século 20 nos mostrou que a lógica pode ser subvertida em três instâncias: pela loucura (um oferecimento de Freud e da psicanálise); pela arte (graças aos surrealistas, dadaístas e às vanguardas em geral); e, de modo mais cruel e definitivo, pelo excesso de racionalização (uma contribuição de Kafka, Beckett, Ionesco e companhia).

Cena do filme 'Kafka', de Steven Soderbergh Foto: Baltimore Pictures

Quase um século separa a morte precoce de Kafka por tuberculose aos 40 anos, em 1924, e o bater do martelo a respeito do destino de seus manuscritos, em 2016. A história é bastante conhecida nos círculos literários: no leito de morte, o escritor pediu ao amigo e confidente Max Brod que queimasse todos os seus papéis, mas a desobediência a seu último desejo legou à humanidade uma das obras mais vigorosas da literatura universal. Antes e depois do autor de A Metamorfose, diversos autores, de Virgílio a Vladimir Nabokov, fizeram pedidos semelhantes e foram traídos, mas o caso de Kafka é o mais emblemático. E se tornou ainda mais interessante com o passar do tempo: após a morte de Brod, em 1968, o espólio contendo tanto os papéis dele quanto os de Kafka passou via testamento à sua secretária, Esther Hoffe, que viveu até 2007. Então, sua filha Eva Hoffe – morta em 2018 – se tornou pivô de uma batalha judicial pelos manuscritos envolvendo Alemanha e Israel. Essa história é narrada em detalhes no livro O Último Processo de Kafka, do jornalista americano-israelense Benjamin Balint. “Nem o próprio Kafka poderia ter escrito uma história tão kafkiana”, escreve o autor, que entrelaça trechos biográficos de Kafka e Brod, perfis jornalísticos das personagens envolvidas no julgamento, como Eva Hoffe, e reflexões da crítica literária a respeito do lugar da obra de Kafka. A situação é complexa desde sua gênese: checo de origem judia, Kafka escrevia no idioma alemão e nutria sentimentos ambíguos em relação ao judaísmo. Disse em uma carta de 1914: “Admiro o sionismo e sinto repugnância dele”. No mesmo ano, escreveu: “O que tenho em comum com os judeus? (...) Mal tenho algo em comum comigo mesmo”. Embora não alimentasse qualquer noção de pertencimento, tampouco fosse um homem particularmente religioso, Kafka compreendia sua posição diante da crescente hostilidade aos judeus, como reconheceu em 1920, durante um pogrom em Praga: “Tenho passado todas as tardes nas ruas, chafurdando em antissemitismo”. No romance inacabado O Processo, que estava entre os manuscritos cuja destruição Kafka ordenara, o tio do protagonista Joseph K afirma: “Um julgamento como esse está sempre perdido desde o início”. Era assim que se sentia Eva, cujo sobrenome (Hoffe significa “esperança” em alemão) não fazia jus à sua situação: o que ela considerava ser patrimônio de sua família estava sendo acossado, de um lado pelo o Arquivo de Literatura Alemã de Marbach; de outro, pela Biblioteca Nacional de Israel. O julgamento sobre onde deveriam ser armazenados seus papéis passa por questões espinhosas. Ainda que escrita em alemão, deveria a obra de um autor cujas três irmãs foram assassinadas pelo nazismo ficar na Alemanha? A obra de um autor judeu com tamanha ambivalência em relação à própria origem deveria ficar num Estado judaico onde ele nunca havia posto os pés? Embora a família Hoffe fosse herdeira dos papéis, deveria um material tão relevante para a literatura universal ser mantido longe dos olhares atentos dos estudiosos de Kafka? O livro de Balint não se propõe a dar essas respostas, mas mostra os vários lados do julgamento e os significados por trás da disputa judicial, que vão muito além de um local físico para uma coleção de documentos, algo que por si só é irrelevante em um mundo digital. O autor respondeu às seguintes perguntas do Estadão por videoconferência.

O jornalista e escritor americano-israelense Benjamin Balint Foto: Arquipélago Editorial

Você escreve como um observador, sem tomar partido. Por que a abordagem neutra? Eu queria deixar o leitor preencher as lacunas e chegar a uma conclusão. Esse era um caso com três partes, cada uma tinha justificativas legítimas e todas cometeram equívocos. Então senti que era a maneira mais natural de se contar essa história. Eu quis distinguir a decisão judicial do nível literário, que tem muito mais nuances. O livro foi um experimento: podemos ler um julgamento como se seus documentos fossem textos literários? Tratei cada advogado como um intérprete de Kafka. E os documentos se prestavam a essa leitura. Eram anormalmente longos, pois os advogados e juízes escreveram sabendo que seriam lidos. Os juízes citavam Kafka, Brod, a Bíblia… Um deles estava em seu último caso, como se estivesse querendo se aposentar em alto nível, em um caso de grande interesse público.O livro fornece tanto os argumentos de quem considera a obra de Kafka um exemplo de literatura judaica quanto os de quem vê o autor totalmente alheio à cultura judaica. Qual é o lugar de Kafka na literatura? A resposta curta é em ambos os lugares. As interpretações divergem radicalmente nesse ponto. Havia muitas ironias nesse caso. Dois países reclamavam para si a obra de Kafka, um escritor que recusava pertencimento nacional, que tinha sentimentos conflituosos sobre o judaísmo e nunca foi um cidadão alemão. Mas Paul Celan nunca viveu na Alemanha mesmo sendo um dos melhores poetas do alemão. Quão determinista é o idioma em que um autor escreve? Ou é possível que Kafka escrevesse em um alemão judaico? Kafka era muito ambivalente sobre o sionismo e distinguia o sionismo do judaísmo. Brod estava sempre tentando trazer Kafka para essa questão e ele sempre escapava. Mas ele era fascinado pela tradição judaica, pela língua iídiche, com a cultura. Estudou hebraico no fim de sua vida quando viveu com Dora Diamant. Há uma carta que nunca havia sido revelada antes desse julgamento em que ele escreve em hebraico perfeito.Como os eventos da 2ª Guerra Mundial impactaram o processo? Quando eu estava no tribunal, senti a 2ª Guerra Mundial pairando sobre aquele caso. Enquanto eu entrevistava o diretor da Biblioteca de Marbach, estávamos falando sobre o motivo da localização dos papéis ser importante sendo que eles seriam digitalizados. Ele disse que nesse julgamento isso importava, porque se o manuscrito fosse para a Alemanha, Kafka seria lido como um autor universal, mas se ficasse em Israel, seria lido como um autor judeu. A ascendência de Kafka era igualmente importante em ambos os casos.A justiça foi feita? É impossível fazer justiça em um processo assim, porque cada lado queria instrumentalizar um escritor, usá-lo para interesses nacionais: os alemães, para expiar a culpa do passado; os israelenses, para ganhar legitimidade cultural. Cada país queria anexar um coletivo nacional ao legado de Kafka. Em um outro nível, a justiça acabou sendo feita na minha opinião, porque se Max Brod não se refugiasse aqui, ele e seus manuscritos poderiam ter sido destruídos pelos alemães. Não é coincidência que aqui, de qualquer lugar do mundo, foi onde Brod foi parar. Mas nessa história toda há um pecado original, que é a desobediência de Brod ao último desejo de Kafka, então a justiça era impossível desde 1924. Tudo depois disso teve de se adaptar a esse pecado original.Como foi a sua relação de jornalista e fonte com Eva Hoffe? Demorou muito para ganhar a confiança de Eva Hoffe. Depois de um ponto, algo na nossa relação mudou e ela começou a tomar a iniciativa de me ligar. Às vezes, queria conselhos. Em outras ocasiões, queria apenas contar sua história. Uma vez ela me ligou e falou sobre [a poeta austríaca] Ingeborg Bachmann e sobre as circunstâncias de sua morte [poucos dias após sofrer queimaduras em um incêndio em sua casa]. Depois que eu desliguei, fiquei me perguntando sobre o porquê de ela ter me contado isso. Tive medo que ela pudesse estar insinuando que se ela não pode ficar com os manuscritos de Kafka, então ninguém poderia ficar e ela cumpriria o desígnio dele.O que Kafka pensaria desse processo todo? Ele teve uma premonição a respeito disso. Há uma carta sobre dois artigos a respeito de sua obra: um de Brod, que escreveu algo como “a escrita de Kafka é o documento mais profundamente judeu de nosso tempo”; e outro texto, que dizia que sua obra era essencialmente alemã. Kafka não se via em nenhum desses extremos, mas no meio deles. Ele provavelmente ficaria estupefato, porque parte de sua engenhosidade foi instruir a destruição de seus escritos à única pessoa incapaz de fazer isso. Ele tinha um afiado senso de ironia e ficaria fascinado, mas se surpreenderia por ainda estarmos falando sobre ele. Entretanto, parte de sua genialidade advém do fato de ele escrever de modo a não ser completamente compreendido por nenhuma escola de interpretação. Essa é uma das suas qualidades que me atraiu. Cada interpretação é igualmente legítima e incompleta.

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