PUBLICIDADE

Livro sobre a repressão às artes mostra como censores eram paranoicos e mal informados

O inventário cobre até nossos dias, com as mordaças providenciadas nos últimos 33 meses pelo governo Bolsonaro

PUBLICIDADE

Por Sérgio Augusto
Atualização:

Dois magistrados afinados com o jeito Bolsonaro de ser e nos envergonhar aplicaram uma rasteira em Chico Buarque e Caetano Veloso. Um deles proibiu Chico de não aceitar ser garoto-propaganda da candidatura do governador gaúcho à 3ª via; o outro impediu que o pastor Marco Feliciano pagasse o que deve por haver xingado Caetano de “pedófilo”. 

Sônia Braga e Caetano Veloso durante protesto Foto: Wilton Junior/Estadão

Ora, direis, que Chico e Caetano foram mais penalizados durante a ditadura militar. Foram. Além de constrangidos, pressionados e censurados, foram presos e até forçados ao exílio. E por tudo isso eles são figuras de proa de um livro sobre a repressão às artes e, mais especificamente, à música popular brasileira, prestes a sair pela Editora Sonora e adrede intitulado Mordaça. Com base em 29 depoimentos exclusivos, colhidos entre 2018 e 2020, junto a quem viveu, compôs, cantou e foi amordaçado depois de 1964, sobremodo após a promulgação do AI-5, em dezembro de 1968, Zé McGill, João Pimentel e o editor Michel Jamel montaram uma história do Brasil autoritário, com os artistas que lhe ousaram opor resistência, burlando com mil artimanhas a vigília dos censores, desde a troca de palavras, estrofes e mesmo títulos das músicas encrencadas, até a adoção de pseudônimos, como “Julinho da Adelaide”, efêmero heterônimo de Chico Buarque.  Distanciadas no tempo, algumas passagens até soam engraçadas. Pois a maioria dos censores, além de paranoicos, eram meio tapados e mal informados. Por desconhecer o significado de “reggae”, um deles vetou uma música de Caetano. O inventário cobre até nossos dias, com as mordaças providenciadas nos últimos 33 meses pelo governo Bolsonaro.  A censura chegou até nós trazida pela Corte portuguesa, timbrada por brancos europeus. Já a música—ou o melhor dela—nos chegou através dos escravos. Era inevitável que também aí ocorressem conflitos entre a Casa Grande e a Senzala, antagonizando valseiros e batuqueiros. De um lado, o fandango, do outro, o lundu. Antes mesmo de o chefe da Polícia do Rio dar aquela incerta em pontos de jogatina que inspirou o primeiro samba oficial da história, músicos como Donga, um dos autores de Pelo Telefone, já não podiam dar muita sopa na rua, que iam direto para o xadrez. Não porque fossem da tavolagem, mas porque compunham e tocavam música, e música, um século atrás, era “coisa de desocupado”—e lugar de vadio era o xadrez.  Ser apanhado com um pandeiro no meio da rua dava cana na certa. O emérito pandeirista João da Baiana só conseguiu livrar-se do xilindró por intervenção pessoal do senador Pinheiro Machado, que ainda o presenteou com um pandeiro novinho em folha. Donga era negro, como João da Baiana, mas apesar de branco, bem nascido e pianista, Freire Júnior também caiu nas malhas do arbítrio. A censura política não livrava a cara de ninguém. Por ter gozado Arthur Bernardes, candidato à sucessão do presidente Epitácio Pessoa, na marchinha carnavalesca Ai Seu Mé, Freire Júnior acabou preso e sua marchinha proibida—mas afinal consagrada campeã do carnaval de 1921. A Censura sempre foi uma fabricante de sucessos. A confusão causada pela gozação em Arthur Bernardes foi episódio isolado na pré-história da censura musical no Brasil. As sátiras políticas, principal insumo do teatro de revista e do cancioneiro carnavalesco, eram aceitas com interessada indulgência pelos poderosos do dia, que faturavam algum prestígio com as brincadeiras que compositores e revisteiros lhes faziam. Indultado o pandeiro, um novo vilão entrou na agenda da repressão: o culto à malandragem e à ociosidade, sibaritismo recorrente nas letras de sambas, choros e marchas, que o Estado Novo (1937-1945), no afã de enaltecer o trabalho, ideia fixa de regimes autoritários, combateu de forma implacável. E o operário de Wilson Batista e Ataulfo Alves parou de rosetar e voltou a pegar o bonde São Januário para ir, todo dia e todo prosa, trabalhar.  O controle das músicas pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão fiscalizador e repressor das ideias na ditadura do Estado Novo, serviu de modelo ao futuro Serviço de Censura e Diversões Públicas, criado em 1946, já no período de redemocratização, com a precípua intenção de manter as manifestações artísticas sob alguma forma de controle (moral, político, ideológico) pelo Estado. A Censura funcionou com a sigla SCDP durante a ditadura militar, até que em 1972 deixou de ser Serviço para virar Divisão, já sem a eufemística colaboração de um Conselho Superior, desde o nascedouro desmoralizado por este adendo de Millôr Fernandes: “Se é censura, não pode ser superior”.  A Censura prosseguiu apenas “serviço” até ser solenemente enterrada, em 1988, pelo primeiro ministro da Justiça da Nova República, Fernando Lyra, com a presença na plateia de diversos sobreviventes da sanha proibitória dos Anos de Chumbo. Um deles era Chico Buarque, co-autor de um documento histórico, escrito a dez mãos, traçando em 22 tópicos as novas relações entre o Estado e a Cultura, que logo apelidaram de “a Lei Áurea da inteligência brasileira”.  Apesar de infringida logo no governo inaugural da Nova República, presidido por José Sarney, com a proibição do filme Je Vous Salue, Marie, de Jean-Luc Godard, a lei permanece em vigor. Quanto à mordaça, que supúnhamos na lixeira desde 1988, muitos são os saudosistas e herdeiros do fascismo caboclo implantado em 1964 que suspiram por ela até hoje. Como um desses viúvos das trevas é o atualpresidente da República, precisamos seguir à risca o conselho de Caetano, permanecendo atentos e fortes.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.