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Lobo solitário

Um homem, uma câmera, uma lente: o que busca e no que acredita o paulistano Mauricio Lima, um dos mais destacados fotojornalistas da atualidade

Por Andrei Netto
Atualização:
Vencedora do World Press Photo, categoria General News, a imagem mostra um combatente do Estado Islâmico recebendo cuidados médicos no norte da Síria Foto: Mauricio Lima para The New York Times

Mauricio Lima estava em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, quando Luiz Antonio da Costa, o La Costa, 36 anos, fotógrafo da revista Época, foi abatido com um tiro no peito em 23 de julho de 2003. Ambos cobriam a ocupação por militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) de um terreno de 170 mil m² pertencente à Volkswagen e situado às margens da Rodovia Anchieta.

O fotógrafo (à dir.) em Donetsk, Ucrânia Foto: Andrei Netto/Estadão

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Naquele cenário de desmando, violência e tragédia, Mauricio, então fotógrafo da Agence France-Presse (AFP), compreendeu a que deveria dedicar sua carreira e sua vida: à fotografia de cunho social, humanitário e de guerra. “A ocupação no terreno da Volkswagen foi o combustível que eu precisava para saber o que fotografar, como fotografar e a razão de fotografar. Eu me via refletido naquelas pessoas”, diz ele.

Doze anos se passaram até aquela noite fechada de agosto de 2015 em que Mauricio tomou nos braços um dos filhos do sírio Ahmed Majid, Zein, de 4 anos, cujas pernas sangravam, ajudando-o a transpor o arame farpado da fronteira entre a Sérvia e a Hungria. “Mauricio não poderia mais fotografar, porque estava escuro”, recorda-se Anemona Hartocollis, repórter do jornal The New York Times. “Quando Ahmed teve a oportunidade de fazer todos cruzarem a cerca, Mauricio ajudou o menino ferido. Creio que ele fez isso apenas porque sentiu que deveria fazer algo. Não era possível ficar apenas observando.”

A epopeia de Ahmed e 12 membros de sua família, que atravessaram a Europa até a Suécia, foi seguida de perto pela equipe do Times. Também foi parte importante de um extenso trabalho de fotografia documental sobre a crise dos refugiados realizado pelo paulistano entre o Oriente Médio e a Escandinávia desde abril de 2015.

Mauricio, 40 anos, é, ele mesmo, filho de um casal que deixou a própria terra. Seu pai, nascido em João Câmara, no Rio Grande do Norte, migrou para São Paulo, onde estudou e trabalhou como revisor de textos jornalísticos e publicitários até se aposentar. É um homem sereno, observador, segundo o olhar do filho. Sua mãe, catarinense de Tubarão, é uma mulher emotiva, de temperamento forte. Em São Paulo, começou como sacoleira comprando roupas na Rua 25 de Março para revender e formou-se auxiliar de enfermagem.

O casal de classe média baixa se desfez quando Mauricio tinha 15 anos e já havia herdado a serenidade, a emotividade e a fibra dos pais. A separação deu origem a uma adolescência turbulenta e de pouco dinheiro. Em 1996, depois de superar a dúvida entre a fotografia e a gastronomia (ainda hoje uma paixão, desfrutada apenas pelos amigos mais próximos), Mauricio chegou à Faculdade de Comunicação da PUC-SP. O emprego em uma empresa de marketing lhe dava a bolsa parcial para pagar a mensalidade, desde que o curso fosse o de publicidade, área que menos lhe interessava. Sua atenção se voltava aos estudos de arte, a Monet, Cézanne e Degas.

“Naquela época, eu achava que existia certa relação entre os pintores impressionistas e a fotografia. Foi quando comecei a me deparar com a obra de Cartier-Bresson, depois de Robert Capa. Decidi pela fotografia por ser fascinado por aquilo que Cartier-Bresson chamava de ‘momento decisivo’”, explica. “Na pintura você pode interpretar um momento por anos. Na fotografia, são milésimos de segundos. É algo que, na verdade, você nem vê por causa do espelho dentro da câmera. E eu achava isso mágico.”

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Feita a escolha, seu talento começou a aflorar rápido. No centro de São Paulo, em 1997, deparou-se com uma cena de crime. Capturou o momento em fotos e anotações e correu para a redação do jornal Notícias Populares. Na portaria, pediu para falar com o editor de fotografia. Foi recebido por Fernando Costa Netto, fotógrafo de guerra, veterano de coberturas de conflitos em El Salvador, Bósnia e Palestina. “Tinha umas fotinhos boas ali”, brinca Costa Netto, que pagou o novato com rolos de filme, não com dinheiro. Uma das fotografias foi para a capa do NP. Era a estreia de Mauricio na imprensa.

No terceiro ano da faculdade, conseguiu uma vaga como estagiário e depois freelancer fixo, “sem direito nenhum”, no diário esportivo Lance. Dali, por indicação do baiano Jorge Araújo, um ícone do fotojornalismo, vencedor do prêmio Esso e de quatro prêmios Vladimir Herzog, mudou-se para a AFP. “Me pediram uma indicação e eu tinha um nome ótimo, um ‘clínico geral’ do fotojornalismo que fazia tudo muito bem e tudo com um olhar bastante particular: Mauricio Lima”, conta Araújo.

Na AFP, Mauricio ganhou visibilidade internacional e se dedicou à fotografia documental, trabalho de fôlego e de longo prazo, como o que realizou a partir da invasão do Iraque, em 2003.

Em 2010, iniciou uma nova série documental, desta vez no Afeganistão, só interrompida em 2014. Em uma dessas viagens, encontrou-se em 2011 com outra jornalista brasileira reconhecida por seu trabalho no exterior: Adriana Carranca, escritora e colunista do Estado e de O Globo. O perfil daquele fotógrafo “raro”, cada vez mais nômade, homem de esquerda radical que diz o que pensa e defende seus valores, a surpreendeu. Ele destoava da maior parte de seus pares. “Nas coberturas de guerra existe muita vaidade. E o Mauricio é a antítese da vaidade”, diz Adriana. “É focado, entende a responsabilidade que tem e demonstra respeito pelas pessoas que fotografa.”

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Sentindo-se esgotado e frustrado, por razões que prefere não comentar, Mauricio achou que era hora de trocar a segurança do emprego fixo por um salto no escuro: queria se tornar fotógrafo independente. Com o apoio de David Furst, ex-colega com o qual havia trabalhado no Iraque, e que se tornara editor de fotografia do Times, pediu demissão da AFP. “Coincidiu o meu desejo de trabalhar de forma mais livre e a necessidade de David de contar com uma pessoa que ele conhecesse, confiasse e tivesse certa admiração”, afirma. A chance veio em 2011, após a queda de Trípoli. Em meio à Primavera Árabe, Mauricio se lançou como fotógrafo independente, registrando para o Times a ofensiva final das milícias revolucionárias contra o ditador Muamar Kadafi em Sirte, seu último bastião. “A Líbia talvez tenha sido, até agora, o momento mais surreal da minha vida”, relembra, referindo-se, entre outras imagens, à do corpo de Kadafi estirado em uma câmara fria de um mercado de vegetais em Misrata.

Nessa época, Mauricio começou uma lenta mutação. Com o fim de uma relação de quatro anos, deixou crescer uma barba exuberante e selvagem, enquanto os cabelos partiram para todos os lados, sem rumo. Solteiro, entregou-se a um casamento monogâmico com o fotojornalismo, levantou âncora e zarpou em uma vida nômade. Hoje não tem uma casa para chamar de sua. Ora cogita Paris, ora Barcelona, ora Istambul. Quando retorna a São Paulo, fica na casa do pai até nova missão. “É como viver um pouco à frente da linha do tempo”, diz, ciente de que não suportará um modo de vida tão intenso para sempre.

A cada 15 dias ou um mês está em um canto diferente do planeta. Essa presença permanente nos acontecimentos mais quentes da atualidade fez com que suas fotos passassem a frequentar as capas de jornais de todo o mundo, em especial do Times. Um observador mais atento reconhecerá suas cores e a profusão de temas contida em cada imagem realizada sempre com a mesma lente EF 35mm f/1.4 acoplada a uma Canon Mark III – camuflada por adesivos que omitem o nome do fabricante, para não fazer propaganda.

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Mas a camuflagem é só do equipamento. Com essa câmera na mão, Mauricio correu, sem capacete ou colete à prova de balas, dos tiroteios entre soldados ucranianos e rebeldes separatistas pró-Rússia quando do cerco ao Aeroporto Internacional de Donetsk, na Ucrânia, em 2014.

Apesar da imprudência, registrou cenas marcantes. Como a de uma mãe devastada diante do corpo da filha, atingida durante um bombardeio de tropas ucranianas na cidade de Makeevka; ou o retrato de Irina Dovgan, cidadã ucraniana presa e humilhada por separatistas, obrigada a portar um cartaz em que se lia: “Ela mata nossas crianças”. Após ser libertada, Irina afirmou à imprensa internacional: essa fotografia salvou sua vida. Se a imagem não tivesse circulado pelo mundo, acredita, teria virado mais um cadáver na guerra fratricida.

Esses registros colhidos na Ucrânia deram a Mauricio uma distinção a qual só um outro brasileiro, um certo Sebastião Salgado, teve a honra de receber: a indicação, em 2015, a finalista do prêmio Pulitzer, o mais importante do jornalismo. A façanha se soma à fieira de outros relevantes prêmios do fotojornalismo mundial que conquistou, entre eles o mais recente, há duas semanas, quando foi um dos vencedores da edição de 2016 do tradicionalíssimo World Press Photo. Em meio a 82,9 mil fotos avaliadas, de autoria de 5,7 mil fotógrafos originários de 128 países, os jurados consideraram duas de suas imagens entre as melhores do ano. A distinção mais importante foi o 1º lugar na categoria General News, com Jacob Ferido, retrato de um combatente com boa parte do corpo queimada, depois de confronto com milícias curdas no norte da Síria.

A fotografia, publicada em reportagem da correspondente Rukmini Callimachi, do Times, revela sua consciência humanitária: o personagem é um miliciano do grupo terrorista Estado Islâmico. Como um médico em uma sala de urgências, Mauricio o tratou como um homem com a vida em risco – sem julgamentos ideológicos. “Ele estava sendo atendido no corredor. Tinha sobrevivido a uma emboscada feita pelos YPG, a milícia curda que controla o norte da Síria”, lembra-se. “Independentemente do lado ao qual pertença ou no que acredite, aquele homem é a síntese da situação atual da Síria, um país dilacerado irresponsavelmente.”

Além dessa distinção, Mauricio recebeu um segundo prêmio no Word Press, o 2º lugar na categoria Daily Life, com uma imagem lírica de índios da tribo Munduruku que parecem flutuar, suspensos sobre as águas do Rio Tapajós, em Itaituba, Pará – uma reportagem assinada por Matt Sandy e realizada para a Al Jazeera America. Sobre os meninos, Mauricio diz ter visto “o puro ato da contemplação, do prazer e de amor recíproco pelo lugar em que se vive, valores praticamente extintos no cidadão da grande metrópole”.

Testemunha de ensaios realizados na Amazônia e em outras regiões do País, Simon Romero, chefe do escritório do Times no Brasil e um dos jornalistas com os quais Mauricio mais atua desde 2011, vê na paciência, na dedicação e no interesse genuíno pelos personagens as marcas do trabalho do fotógrafo brasileiro. “Mauricio é obsessivo, no bom sentido, e se interessa pelas pessoas com as quais conversamos”, diz Romero. “Está entre os melhores do mundo hoje.”