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A jornalista Luciana Garbin traz foco para as questões femininas na sociedade atual

Opinião|Crise climática e IA desregulada: estamos preparados para os dois maiores desafios do século?

Com o planeta se transformando, solução de grandes problemas da humanidade dependerá da tecnologia. Mas pioneiro da inteligência artificial alerta para a ilusão perigosa de se achar que os países estão preparados para neutralizar seus riscos

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Atualização:

Milhares de imagens dramáticas têm mostrado a dimensão da tragédia climática no Rio Grande do Sul. Mas, ironicamente, uma que mais vi gerar discussão nas redes sociais nos últimos dias é a de um cenário apocalíptico na zona sul de São Paulo. Pura criação de inteligência artificial, inventando como ficaria a região do Rio Pinheiros se chuva semelhante à que atingiu os gaúchos caísse sobre Morumbi, Pinheiros, Butantã e imediações. Não estranha. Não importa o assunto, logo surge algo de IA no meio. Mesmo que muitas projeções sejam exercício de ficção, nunca se falou tanto sobre o tema e sobre os impactos que a inteligência artificial terá sobre a vida e o trabalho. E, dependendo do tom da conversa, dá logo pra perceber se o interlocutor está no grupo dos “tecnoeufóricos” ou dos “tecnocatastrofistas”.

Quem está buscando o caminho do meio tem a chance de entender bem mais sobre o assunto lendo o livro A Próxima Onda: Inteligência Artificial, Poder e o Maior Dilema do Século 21 (Editora Record, 2023). Escrito por Mustafa Suleyman, cofundador da DeepMind e da Inflection AI, e Michael Bhaskar, a obra relembra as sucessivas revoluções tecnológicas pelas quais a humanidade passou e destaca que estamos na iminência de cruzar uma barreira decisiva na história da nossa espécie.

Ruas alagadas em Canoas, Rio Grande do Sul, em 6 de maio Foto: Amanda Perobelli/REUTERS

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“Tudo está prestes a mudar. Em breve estaremos rodeados de inteligência artificial. Ela vai executar tarefas complexas - operações comerciais, produção ilimitada de conteúdo digital, gerenciamento de serviços públicos essenciais e manutenção de infraestrutura. Seremos um mundo com impressoras de DNA, computadores quânticos, patógenos artificialmente criados, armas autônomas, assistentes robôs e energia abundante. Tudo isso representa uma mudança drástica nos limites da capacidade humana”, assinala, para em seguida acrescentar: “Mas NÃO estamos preparados.”

O livro mostra como nessas revoluções tecnológicas o progresso em uma área acelera o progresso nas outras, num processo de catalisações cruzadas que dribla os próprios inventores. “O desafio inevitável da tecnologia é que seus criadores rapidamente perdem o controle sobre o caminho seguido por suas invenções. A tecnologia existe em um sistema complexo e dinâmico (o mundo real) no qual consequências de segunda, terceira e enésima ordens reverberam de modo imprevisível.”

Vejamos por exemplo o caso da imprensa de Johannes Gutenberg. Quando em 1440 o gravador do Sacro Império Romano-Germânico inventou a prensa móvel, só existia um exemplar na Europa - o original dele, em Mainz. Cinquenta anos depois, já havia mil prensas espalhadas no continente e o número de livros se multiplicava exponencialmente. “Na Idade Média, a produção de manuscritos era da ordem de centenas de milhares por grande país por século. Cem anos depois de Gutenberg, países como Itália, França e Alemanha produziam cerca de 40 milhões de livros a cada meio século. No século 17, a Europa imprimiu 500 milhões de livros.”

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Quando os custos despencaram, a demanda disparou, reafirmando o apetite da civilização por tecnologias úteis e mais baratas. E, com as tais das catalisações cruzadas, também acabou se destroçando o objetivo original do inventor. “Tudo o que Gutenberg queria era ganhar dinheiro imprimindo Bíblias. Mas sua prensa foi a catalisadora da Revolução Científica e da Reforma, tornando-se assim a maior ameaça à Igreja Católica desde seu estabelecimento.”

A introdução de novas tecnologias sempre tem grandes consequências políticas, lembram os autores. “Assim como o canhão e a prensa móvel subverteram a sociedade, devemos esperar o mesmo de tecnologias como IA, robótica e biologia sintética.” Sobretudo num mundo estressado por guerras, pandemia, crises e por pressões antigas e crescentes, como o declínio da confiança pública nos governos, a crescente desigualdade, a desconfiança em relação à mídia e ao establishment científico e, não poderia faltar, o aquecimento global. “Entrando na próxima onda, muitas nações são assaltadas por grandes desafios que minam sua efetividade, tornando-as mais fracas divididas e inclinadas a decisões lentas e falhas.”

O livro destaca que a ideia de que a tecnologia, sozinha, pode solucionar problemas sociais e políticos é uma ilusão perigosa. Assim como também é errado o conceito de que esses problemas podem ser solucionados sem tecnologia. Principalmente com o planeta se transformando.

“Os avanços tecnológicos nos ajudarão a cultivar alimentos em temperaturas insustentáveis, detectar enchentes, terremotos e incêndios com antecedência; e aumentar o padrão de vida de todos”, afirma Suleyman. “Eles tornarão os cuidados de saúde mais eficientes e acessíveis. Eles nos ajudarão a inventar ferramentas para fazermos a transição para a energia renovável, combatermos as mudanças climáticas em uma era na qual a política empacou e apoiarmos os professores, ajudando a aumentar a efetividade de sistemas educacionais mal financiados. Esse é o real problema da próxima onda.”

Ainda estamos no começo do século 21, mas seus dois grandes desafios estão postos: como mitigar e se adaptar à crise climática e como se preparar para encarar os riscos de uma IA desregulada. Estão os países preparados para lidar com eles? A julgar pelas imagens - verdadeiras - que temos visto do Sul, ao menos no primeiro quesito o Brasil ainda está no zero.

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Opinião por Luciana Garbin

Editora no ‘Estadão’, professora na FAAP e mãe de gêmeos.

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