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Cinema, cultura & afins

Opinião|Cordilheira, de Daniel Galera

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Atualização:

Se alguém se diverte com isso, a leitura de Cordilheira pode se transformar em alegre pesca de referências. A começar por José Holden, o argentino por quem a protagonista se apaixona em Buenos Aires, elo com O Apanhador no Campo de Centeio, de Salinger, a leitura juvenil por excelência. Mas a coisa vai além e pode se encontrar, naquela microssociedade de intelectuais portenhos, ressonância um tanto tardia do Clube da Serpente de Horácio Oliveira e seus amigos na Paris dos anos 60, conforme se lê nas páginas de O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar. As alusões mais claras - e mais contemporâneas - são a Roberto Bolaño, cujo romance Os Detetives Selvagens parece funcionar como uma espécie de farol para a literatura latino-americana atual.

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O comentário nada tem de depreciativo, pois a obra de Bolaño, autor chileno radicado na Espanha e morto precocemente com 50 anos, pode ser influência mais que salutar sobre quem está escrevendo hoje em dia. Desde, é claro, que a admiração não se transforme em bolañolatria, em religião, o que sempre tende a empobrecer leituras que poderiam ser estimulantes.

De qualquer forma, a comunidade de escritores fanáticos imaginada por Daniel Galera faz sentido mesmo para o leitor que desconheça essas piscadinhas de olhos eruditas. Trata-se, ainda uma vez, de meditar sobre os limites tênues entre a arte e o real. No caso, entre o que se escreve e a experiência vivida. Galera oferece uma torção adicional a essa problemática do escritor: como viver de acordo com aquilo que escrevemos e inventamos? A proposta é ir até o fundo, e fazer com que o artista assuma o papel do personagem que ele mesmo tirou do nada. Algo como o poeta de Fernando Pessoa, que finge a dor que deveras sente.

A troca de persona literária também não deixa de ser ousada ao colocar a narração, na primeira pessoa, na boca de uma personagem feminina, a problemática Anita, escritora que renega o primeiro livro e deseja mesmo é ser mãe. A história supõe ainda um deslocamento físico, o que faz parte do projeto literário da coleção.

E é interessante que as possíveis referências de Galera sejam também a viajantes. O protagonista de Cortázar é um intelectual argentino auto-exilado em Paris, obrigado, na segunda metade do livro, a repatriar-se quando expulso da França. De volta a Buenos Aires, sente-se mais estrangeiro do que em Paris. Já Arturo Belano, alter ego de Bolaño, é, como seu criador, um expatriado militante. Esses personagens vivem a experiência da viagem como estranhamento. Infelizmente essa dilaceração, que ocupa o centro selvagem desses livros radicais, não se transmite em meio às suas influências mais superficiais.

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(Cultura, 19/10/08)

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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