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Medo, sociedade e cultura: Como lidamos com o sentimento no mundo contemporâneo

Manipulação das massas provoca perda da consciência individual, mas é possível driblar a ansiedade diante do desconhecido

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Por Camila Tuchlinski
Atualização:

O medo é um mal necessário, na medida em que precisamos dele para tomar atitudes preventivas. A criança que coloca o dedo na tomada e se machuca, por exemplo aprende a não repetir a ação. O medo é uma das seis emoções básicas dos seres humanos em uma definição já apresentada por Charles Darwin em um livro menos conhecido, A Expressão das Emoções em Homens e Animais.  Para desvendar essa emoção nos seres humanos e na sociedade e como reagimos diante do medo, o Estado conversou com o psicanalista Christian Dunker, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, e a professora de Sociologia da FAAP Crislaine de Toledo Francisco.

O medo geraangústia e pode fazer com que o indivíduo seja presa fácil para líderes mal intencionados; mas é possível lidar com ele. Foto: Pedro Hamdan

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“O que caracteriza o medo é uma prontidão para a ação. Quando a gente sente medo, vão se intensificando os sinais corporais, o foco da atenção, e isso caminha para uma espécie de encruzilhada: ir em frente, atacar, recuar, fugir. Encontrar defesas para aquele objeto que é a causa do medo”, avalia Dunker. O psicanalista e uma série de especialistas debateram o tema na edição especial da Revista Humboldt, uma publicação digital do Goethe-Institut e que estabelece um diálogo contemporâneo entre a Alemanha e a América do Sul. A publicação conta com análises sobre o medo na política, na literatura, cultura e sociedade.  Historicamente falando, o ser humano sempre sentiu medo. Na Era Antiga, existia medo de ser escravizado ou morto. Na Idade Média, o receio de não estar protegido dentro de um feudo.  No mundo contemporâneo, o estado conquista a ‘tutela’ em relação ao manejo desta emoção. “Na modernidade, o estado toma para si a política de construção do sujeito e vai construir isso através das instituições, das escolas, família, empresas, economia, cultura e o estado passa a meio que administrar um pouco estas emoções das quais o Christian se referiu”, avalia a professora de Sociologia da FAAP Crislaine de Toledo Francisco.  O medo precisa ser algo que faça o indivíduo se sentir seguro. Na visão da socióloga, o estado precisa manter seus cidadãos sob o efeito de uma seguridade social. “É a segurança dada por um ‘estado pai’, porque, de alguma forma, esse sujeito não pode ser levado ao pânico. Ele precisa de instrumentos subjetivos para conter esse pânico e se manter dentro de si, para que não caia na loucura”, diz. Nesse ponto, há uma sincronia entre a filosofia política e a psicanálise, como lembra Christian Dunker. “O uso político desse afeto tem uma certa administração do futuro. Assim como a raiva é um sentimento que nos projeta ao passado, o medo nos leva ao futuro. Os regimes modernos, por exemplo os tirânicos ou os escritos por Maquiavel, se especializaram em criar uma experiência de medo para dizer: ‘olha, vocês precisam de alguém’ ou ‘olha como o mundo é inseguro, quantos perigos não existem por aí’. Em seguida, após esse desamparo, oferecem o paternalismo. Em resumo: se entregue aos cuidados de alguém mais poderoso, porque sozinho você não consegue”, afirma. Christian Dunker acrescenta que este é o cenário ideal para o surgimento do populismo e das tiranias no mundo. “Vai aparecer aquele sujeito que vai vender proteção em troca do medo que ele mesmo causou. ‘Venha com esse que tem tanto poder’, que, para ter tanto poder, precisa parecer com uma figura ameaçadora, ‘esbravejadora’. E a gente fica numa encruzilhada: vou com ele e me coloco sob esse guarda-chuva ou fico sozinho e posso ser objeto da raiva deste pai? Esse é o ‘pai hostil’ do complexo de Édipo, a quem eu tenho, no fundo, sentimentos hostis, mas eu suprimo esse sentimento em troca da proteção que ele me oferece”, avalia.

Como agir diante do medo durante a pandemia do novo coronavírus

Em maior ou menor grau, o indivíduo se depara com o medo durante a pandemia do novo coronavírus. No início, o inimigo comum era a covid-19. Agora, alguns líderes se aproveitam do momento para manipular a situação em benefício próprio. “A grande estratégia dos totalitaristas é dividir a realidade em duas: ‘Você está do meu lado ou é meu inimigo’. Nesse momento de pandemia, a princípio, a gente começou com um inimigo invisível chamado novo coronavírus. Mas, com as políticas de enfrentamento a essa pandemia, muito rapidamente os grupos humanos vão se colocando em lados opostos. E esses grupos sociais, políticos, vão se dividir em dois grupos: ou você está do meu lado ou é um inimigo da nação, da vida”, ressalta Crislaine de Toledo Francisco. Para o indivíduo, solitário em seus pensamentos, lidar com o medo parece pesado demais. A angústia provoca processos de projeção: aquilo que não conseguimos reconhecer em nós mesmos, colocamos no outro. “Manipulado politicamente, esse sujeito consegue se conectar com o outro que nos habita, com o que está dentro de nós, que são nossos complexos, nossa tendência a negar aquilo que é fonte de muita angústia. A gente cria inimigos. No estado em que a gente se vê atacado por dentro e por fora, a gente regride e volta a um funcionamento mais simples, uma infantilização. O estado de massa implica em redução cognitiva, demitir-se da sua responsabilidade. A gente faz coisas que nunca faria se estivesse sozinho. Naquela conversa de bar, você fala o que raramente falaria se estivesse sozinho com o outro”, pondera Dunker. Apesar de sermos, de certa forma, forçados a nos dividir, a socióloga Crislaine de Toledo Francisco esclarece que é possível driblar o medo. “Você não está perdido na massa, apesar de as políticas muitas vezes tentarem fazer isso com a gente, nos dar uma possibilidade ilusória em aspectos como consumir, se entorpecer. Lembre-se: seu mundo interior está povoado, está recheado de repertórios significativos que devem e podem ser resgatados agora com firmeza para que você consiga se preservar nesse momento de recolhimento. Para que você consiga, na volta ao seu convívio social, não se esquecer de quem você é, de quem está aí dentro, apesar dos inúmeros estímulos que podem querer te levar ao pânico ou ao medo do incontrolável”, conclui. Na opinião do psicanalista Christian Dunker, é preciso encarar o medo de frente: “Não faça aquela ‘operação avestruz’ de deixar o resultado do exame em cima da mesa ou o extrato do banco esperando e aí um dia você vai descobrir o tamanho da encrenca. Olhe de frente, se informe, use máscara. A máscara contém uma fórmula ética para o momento. Máscara é para você não passar para o outro. Então, o começo da reflexão é: você está sofrendo, mas não está sofrendo sozinho”.

Assista a entrevista com Christian Dunker e Crislaine de Toledo Francisco para a TV Estadão:

O medo no cinema latino-americano

Na indústria cultural, o medo foi, por muito tempo, importado para a América Latina. Produções cinematográficas do terror eram mais presentes em países da Europa ou nos Estados Unidos. No Brasil, a referência sobre o tema foi José Mojica Marins, conhecido como Zé do Caixão, personagem que criou em 1963, mesmo ano do surgimento do filme que marcou sua carreira: À Meia-Noite Levarei Sua Alma. O ator e cineasta morreu em fevereiro deste ano.  Na Argentina, por exemplo, três filmes ganham destaque, na opinião do crítico de cinema Diego Brodersen, diretor de programação da Sala Leopoldo Lugones, do Teatro San Martín, em Buenos Aires. “Há um trio de filmes inevitáveis: Una luz en la ventana (1942), de Manuel Romero, com Narciso Ibáñez Menta no papel principal; El extraño caso del hombre y la bestia (1951), de Mario Soffici, em seu duplo papel de diretor e ator; e as Obras maestras del terror (1960), de Enrique Carreras, baseadas em relatos de Edgar Allan Poe”, afirma.  Brodersen ressalta que o México, por exemplo, possivelmente é o país da região que mais se empenhou em produzir horrores cinematográficos. “A gente tem clássicos muito pioneiros como La llorona (1933), de Ramón Peón, ou títulos como El vampiro (1957), de Fernando Méndez, e Hasta el viento tiene miedo (1968), de Carlos Enrique Taboada, marcam uma afinidade com temáticas e estilos importados dos Estados Unidos e da Europa, mas assimilados ao folclore e aos relatos populares regionais”, finaliza.

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Serviço:Revista Humboldt - Especial sobre o Medo A origem do medo e interferências na política, sociedade e cultura, com artigos de autoras e autores da América do Sul e da Alemanha.  Para conferir a edição digital completa, acesse o site.

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