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Alice Ferraz: O bem-vindo silêncio

Pai e mãe na frente e as filhas, quatro meninas, sentadas no banco traseiro, em uma época em que cinto de segurança ou cadeira infantil não eram itens obrigatórios

Por Alice Ferraz
Atualização:

A rotina era sair de São Paulo todos os finais de semana. Pai e mãe na frente e as filhas, quatro meninas, sentadas no banco traseiro, em uma época em que cinto de segurança ou cadeira infantil não eram itens obrigatórios. 

Não existia também a possibilidade de que cada um ouvisse sua própria trilha sonora, nem o famoso walkman tinha sido lançado até o momento; então, Frank Sinatra, Charles Aznavour e Roberto Carlos eram os compositores escolhidos pelo casal e suas fitas cassete ouvidas por toda a família em qualquer estrada em que estivessem. Ela lembra com clareza de uma inquietação no ar quando a música parava. As irmãs dormiam e o pai e a mãe ficavam calados. 

Ilustração Ouvir para a coluna de Alice Ferraz Foto: Juliana Azevedo

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Imediatamente, ela começava a falar e falar sobre qualquer assunto. Contava suas histórias da escola, dos professores e fazia perguntas que surgiam aos montes, enfileiradas. Até que, em um desses dias na estrada, quando se perdia na própria narrativa, ela foi interrompida pelo pai e sua voz severa. “Minha filha, você não precisa falar qualquer coisa só para ocupar espaço porque estamos em silêncio. O silêncio não significa tristeza ou desconforto. Só estamos quietos, aprenda a ficar quieta também”, concluiu. A pequena ficou sem graça, escorregou pelo banco traseiro até encostar a coluna e fechou o bico. E foi nesse momento que começou a aprender que a fala aleatória era inadequada. Gostava de falar, gostava dos detalhes das próprias histórias, mas entendeu que teria de prestar maior atenção para comunicar seus pensamentos de uma forma mais enxuta. Começou a pensar mais antes de falar e avaliar em quais situações o silêncio parecia bem-vindo antes de sair preenchendo espaços com sua fala. 

Neste 2022, tem relembrado a cena do carro com certa frequência, agradecendo a seu pai pelo “puxão de orelha”. Tem pensado que talvez seja um momento em especial do mundo no qual a humanidade esqueceu de deixar espaço para o silêncio, tentando preencher cada canto com respostas rápidas, certezas e áudios de voz no WhatsApp que mais parecem discursos. 

Ela vive diariamente cenas em que percebe que metade das palavras poderiam não ter sido ditas para que o precioso tempo fosse mais bem preenchido. No barulho de um desses encontros, lembrou-se do que o filósofo, teólogo e educador Rubem Alves já alertava desde 2008, quando escreveu: “Tagarelas alegres com falas tolas nos tiram das águas profundas e necessárias”.

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