Em cerimônia realizada no Palácio do Itamaraty, no Rio, no dia 24, o músico Jards Anet da Silva, recebeu, da missão brasileira da Organização das Nações Unidas, um troféu, criado pelo artista plástico italiano Harry Rosenthal, com uma placa em que se lê: "Ao compositor Jards Macalé - em reconhecimento pelo trabalho desenvolvido em prol dos direitos humanos". A honraria só veio para o Brasil uma vez, antes desta - e não para uma pessoa, mas para a ONG carioca Viva Rio. E a história que dá o reconhecimento a Jards Macalé tem início em 1973, auge do regime militar, governo Garrastazu Médici. Naquela época, a classe artística brasileira (não apenas os músicos) vivia sob censura. Alguns artistas estavam efetivamente impedidos de criar, portanto de viver de seu trabalho - tudo o que fizessem era proibido, como subversivo, atentatório à moral e aos bons costumes, perigoso para a segurança nacional. Em dificuldades financeiras, Macalé, que já participara de vários shows beneficentes (recurso comum para conseguir dinheiro e permitir a sobrevivência daqueles que eram calados pela força censória) procurou o Museu de Arte Moderna, do Rio de Janeiro, e propôs a montagem de mais um show beneficente - em benefício próprio. Era piada - de humor negro, mas piada. A idéia era chamar a atenção para a penúria que apenava os criadores. O então diretor da cinemateca do museu, Cosme Alves Neto, lembrou a Macalé que, naquele momento, comemoravam-se os 25 anos da Carta de Declaração dos Direitos Humanos, da ONU, e que haveria um evento comemorativo. Cosme sugeriu que Macalé aliasse sua proposta ao evento. Apresentou-o a Antônio Muiño, diretor do Centro da ONU no Brasil, que topou a idéia. Montou-se um show, com Luís Melodia, MPB-4, Raul Seixas, Johnny Alf, Jorge Mautner, Paulinho da Viola, Edu Lobo, Chico Buarque e muitos outros. Os participantes leriam, entre as músicas, trechos da Declaração dos Direitos Humanos. O ato político-musical foi gravado e pretendia-se lançá-lo em elepê duplo, com capa de Rubens Gerchman. Cópia da Declaração viria encartada no álbum. A censura proibiu. O disco foi, afinal, lançado em 1979, com o mesmo nome de Direitos Humanos no Banquete dos Mendigos. Está fora de catálogo. O espetáculo foi reeditado, com elenco quase todo novo e sob supervisão de Macalé, no ano passado, no Teatro Municipal de São Paulo, por iniciativa do Itaú Cultural. Indicado para o Prêmio Multicultural Estadão 2002, Jards Macalé lembra que aquela "subversão" acabou dando origem a movimentos de defesa de direito autoral (com a criação, em seguida, das sociedades administradoras de direitos Sombrás e depois Amar), e ao Projeto Pixinguinha (que levava artistas de uma região do País para cantar em outra, no propósito de defender a cultura e estimular uma integração criativa nacional). Ator, compositor, arranjador, violonista, Jards Anet da Silva nasceu na Tijuca, zona norte do Rio. Sua mãe cantava e tocava piano; o pai, acordeão. Ainda menino, mudou-se para Ipanema, onde ganhou o apelido de Macalé - nome do pior jogador do time do Botafogo, na ocasião. Adolescente, formou seu primeiro grupo musical - o duo Dois no Balanço; veio depois o Conjunto Fantasia de Garoto, de jazz, seresta e samba-canção. Estudou piano e orquestração com Guerra Peixe, violoncelo com Peter Dauelsberg, violão com Turíbio Santos e Jodacil Damasceno, análise musical com Ester Scliar. Começou carreira profissional em 1965, quando substituiu o violonista Roberto Nascimento no Grupo Opinião. Fez direção musical dos primeiros espetáculos de Maria Bethânia e tornou-se instrumentista requisitado, ao mesmo tempo em que teve composições gravadas por Elisete Cardoso, Nara Leão e outros grandes. Criou, com Gal Costa, Paulinho da Viola e o parceiro José Carlos Capinam, a empresa Tropicarte, com a qual pretendiam empresariar os próprios espetáculos. Em 1969, apresentou a música Gotham City, no 4.º Festival Internacional da Canção, e lançou o primeiro disco, o compacto duplo de 33 rotações por minuto Só Morto. Em seguida, trabalhou com Gal Costa no disco Le-Gal e no show Meu Nome É Gal. Em 1971, foi para Londres, a convite de Caetano Veloso, com quem tocou e gravou; de volta ao Brasil, no mesmo ano, lançou o primeiro elepê, Jards Macalé. Cumpriu o circuito universitário (alternativa para os músicos que o regime militar olhava de lado) com Gilberto Gil e, em 1974, lançou o elepê Aprender a Nadar. Foi ator e fez a música dos filmes Amuleto de Ogum e Tenda dos Milagres, de Nelson Pereira dos Santos, compôs para as trilhas sonoras de Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade), O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (Glauber Rocha), A Rainha Diaba (Antônio Carlos Fontoura), Se Segura Malandro (de Hugo Carvana), entre vários, além de trilhas para teatro. Em 1976, inaugurou um trabalho a quatro vozes com Moreira da Silva, com quem correu o País (pelo Projeto Pixinguinha) e de quem se tornou parceiro no samba de breque Tira os Óculos e Recolhe o Homem. Lançou ainda os discos Contrastes (1977), 4 Batutas e 1 Coringa (1984), Let´s Play That (1994), O Q. Eu Faço É Música (1998) e Macalé Canta Moreira (2001), além do single Rio Sem Tom/ Blue Sued Shows (1987) e do disco Peçam Bis, em que canta Ismael Silva ao lado de Dalva Torres. Reconhecidamente um dos maiores violonistas do País, Macalé é um músico irrequieto e personalíssimo, um estilista que sempre teve como parceiros outros criativos não-rotuláveis, como o citado Capinam, mais Wally Salomão, Torquato Neto, Naná Vasconcelos, Xico Chaves, Jorge Mautner, Glauber Rocha - e ainda Abel Silva, Vinicius de Morais, Fausto Nilo. Gravado pelos maiores intérpretes da MPB, Macalé assina clássicos como Vapor Barato, Anjo Exterminado, Mal Secreto, Movimento dos Barcos, Rua Real Grandeza, Alteza, Hotel das Estrelas, Poema da Rosa. Havendo convivido e colaborado com os tropicalistas (tem parcerias com Gil e Caetano), rompeu com eles - Tom Zé fez coisa semelhante - por considerar que o movimento havia sido cooptado pela indústria cultural, perdendo a independência. Preferiu seguir, sim, independente, sabendo que o caminho era mais difícil. A rebeldia criativa de Macalé não é opção, mas pulsão. Cria subvertendo. Relê recriando. Compõe propondo reinvenção, rezando para Gláuber e Jobim, Radamés e Geraldo Pereira, propondo sempre a menos óbvia das sínteses - que realiza.
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