Espíndolas fazem seu cancioneiro universal

Alzira e Tetê cantam temas do Centro-Oeste com capricho orquestral

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Por Julio Maria
Atualização:
Irmãs. Alzira e Tetê serão acompanhadas por arranjos orquestrais em dois shows, hoje e amanhã, no Sesc 24 de Maio Foto: Daniel Teixeira/ Estadão

Elas já haviam colocado as terras roxas de Campo Grande na música brasileira de algumas maneiras. Ao chegarem a São Paulo, nos anos 1980, Alzira e Tetê Espíndola tiveram de explicar que as ideias de tempo ternário que transpiravam de suas vozes não eram inspirações europeias em Johann Strauss ou remissões jazzísticas fora do quadrado, mas um vírus que se contrai nas rodas de guarânia vividas na infância das fronteiras com o Paraguai. Fizeram com aquilo o futuro dos anos de vanguarda paulistana e seus afluentes, como o que Alzira E mostrou em 1987 cantando Terra Boa em seu primeiro álbum, 3M, ou o que a irmã Tetê já havia feito em Piraretã, de 1980, com divisões que faziam perguntar com alegria de que aldeia a moça vinha. E fizeram também a celebração dos ternalismos de forma mais geográfica, mais regional, gravando Anahy, em 1998, com as polcas e as guarânias que a mãe cantava em seus primeiros anos.

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As Espíndola voltam agora ao mesmo território, o único onde o espanhol também é língua corrente no Brasil com suas “sete cidades ligadas por uma ponte ou uma rua”, como diz Alzira, para juntar os dois mundos em um álbum de resistência de uma cultura mal delimitada em seu próprio país. “Uma música que não se ouve mais, porque não ouvimos nossos ancestrais. Por que não trazer essa latinidade para esse Brasil? Por que não nutrir os mais jovens com informação e poesia?”, completa. 

Recuerdos, o disco lançado pelo Selo Sesc, tem a participação de Ney Matogrosso, curiosamente encontrando pela primeira vez narrativas poéticas de sua terra natal com tanta intensidade em um único projeto. “Sei que elas visitam esse repertório regularmente, mas para mim é uma coisa inédita”, diz Ney. Recuerdos, o show, terá Alzira e Tetê neste sábado, 28, às 21h, e domingo, 29, às 18h, no Sesc 24 de Maio. Ney não estará presente por estar na estrada, “sem tempo para passar em casa”, como diz, fazendo shows da turnê Bloco na Rua.

Os arranjos de Zé Godoy e a direção artística de Arnaldo Black, marido de Tetê, imprimem algo que tiram o álbum do mesmo território de Anahy, apesar de todos os encontros. Existe uma regionalidade forte, incontornável, mas de um tratamento de cordas pontuadas, como em Trem do Pantanal, que se torna uma entrega deslumbrante de violinos, viola e violoncelo, e de sopros na flauta e na trompa, além de violão, piano, a craviola de Tetê e o baixo acústico. Mais universal do que localizado, mas sem vanguardismos, as irmãs se portam com mais deferência do que interferência no que cantam.

Tetê Espíndola e Alzira E durante ensaio em estudio em São Paulo Foto: Daniel Teixeira/ Estadão

Ao contrário do Nordeste e seu ritmo de mil faces, do Norte e suas guitarradas de mil festas, do Sul e seus orgulhos de estandarte e do Sudeste, recebendo todos os anteriores para tirar a novidade do hibridismo, o Centro-Oeste não tem suas delimitações musicais tão claramente percebidas. As canções que produz, mesmo de divisões tão diferentes das outras regiões, são embutidas muitas vezes indiscriminadamente em uma cultura sertaneja que nem sempre se sabe de onde vem e seus ritmos viram quase sempre guarânia, remetendo à mal vista paraguanização da música sertaneja, das harpas de Perla aos metais de Milionário & José Rico, dos anos 1970.

Um disco de visita às terras demarcadas dos Espíndola, a família que mais fez por essas regiões, é assim, também, um serviço. Ney abre cantando Meu Primeiro Amor (Lejania), que Cascatinha e Inhana fizeram primeiro em 1952, e se ouve aqui os tangos argentinos atravessados por tantas outras heranças ibéricas. Anahy (Leyenda de la Flor del Ceibo), que a mesma dupla gravaria em 1968, coloca as irmãs de timbres tão parecidos e tessituras distantes, abrindo vozes comoventes. 

Ney volta em Ciriema (ou Siriema do Mato Grosso), que duas ou três gerações gravaram, canta Recuerdo de Ypacaraí, toda em espanhol, e passa por Índia, uma que, apesar da proximidade com a “flor do meu Paraguai” de sua Bela Vista natal, nunca havia gravado. “Sinto que, desta vez, abrimos a fronteira”, diz Tetê. “E fizemos isso mostrando como estão todos lá, o latino, o negro e o índio.”

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