PUBLICIDADE

Ela perdeu o pai para a covid, entrou em Harvard e descobriu mecanismo importante por trás da doença

Equipe que ela liderava ao lado de colega descobriu proteína do vírus causador da covid que ajuda a enganar nosso sistema imune, e encontraram um potencial tratamento

Foto do author Leon Ferrari
Por Leon Ferrari

Quando se despediu do pai para realizar o sonho de finalizar o doutorado na prestigiada Harvard Medical School, nos Estados Unidos, no final de janeiro de 2020, a cientista brasileira Marcella Cardoso, de Campinas, não imaginou que essa seria a última vez que o veria vivo. A filha lembra de Luiz Carlos Cardoso, em seu 1,96 metro, como um homem saudável e forte “em todos os sentidos”. “Nunca vi ele sucumbir nem a uma febre.” No entanto, em 2021, em uma das piores ondas da pandemia da covid-19 no Brasil, ele, aos 67 anos, adoeceu, evoluiu para o quadro grave da doença e não resistiu.

PUBLICIDADE

A morte dele foi um choque, não só para Marcella, mas até para a equipe que cuidava dele. Uma pergunta ficou ecoando na cabeça dela: por que uma pessoa saudável e forte como o pai dela sucumbiu à covid?

Agora, cerca de três anos após a morte do pai, ela ajuda a trazer uma possível resposta em um estudo publicado na segunda-feira, 22, na renomada revista científica Cell. Ela e a equipe que liderou descobriram qual proteína – a ORF6 – ajuda o vírus causador da covid a “enganar” nosso sistema imunológico e a passar despercebido pelas células de defesa, em um processo chamado de imunoevasão.

Marcella Cardoso na Harvard Medical School durante o doutorado, em 2020 Foto: Arquivo Pessoal

Além disso, encontraram um potencial tratamento para atacar esse novo alvo. O artigo é resultado do pós-doutorado de Marcella, que começou poucos meses após o falecimento do progenitor no Ragon Institute, instituição americana vinculada ao Massachussets General Hospital, ao Massachussets Institute of Technology (MIT) e à Universidade Harvard, e que tem como foco apoiar pesquisas que estudam de que forma o sistema imunológico pode combater doenças.

Enquanto para muitos, esse resultado vai ser uma importante nova evidência científica, para Marcela, o artigo é também uma carta de amor ao pai. “As pessoas vinham me falar: ‘Você é louca! Mal viveu o tempo do luto do seu pai e está trabalhando justamente com a doença que matou ele’. Mas acho que isso foi uma cura para mim também”, disse ela ao Estadão.

“A cura (para o luto) nunca vai existir. Mas acho que esse processo foi bom nesse sentido, consegui manter meu pai sempre vivo dentro de mim. Uma das coisas que eu aprendi na minha vida inteira é fazer do caos carona para me transformar e revolucionar de alguma maneira”, afirmou Marcella, que procurou o Estadão para contar sua história e os resultados de sua pesquisa pelo fato de o pai ser um leitor assíduo do jornal. “Acordava e ele estava lendo o Estadão.”

De onde vem uma cientista

Filha de uma professora e de um corretor de imóveis, os estudos de Marcella foram parte em escola pública e parte na rede privada, mas sempre com bolsa – que, diga-se de passagem, exigiam performance para a manutenção do benefício. Isso deu a ela, desde pequena, uma visão muito analítica para a desigualdade, e a fez entender que o caminho para alcançar as coisas que sonhava seria um pouco mais difícil.

Publicidade

“Quando estava numa escola privada, as casas das minhas colegas eram luxuosas, de três andares, e eu vivia num bairro humilde, em uma casa que não tinha nem reboco na parede, e dividia o quarto com meu irmão. Nesse contexto de escassez, minha mãe dizia para mim, desde que era muito pequena, ‘Marcella, se você quer mudar a sua realidade, você precisa estudar’.”

Foi o que ela fez. Cursou Biologia na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e logo engatou um mestrado, especializando-se em saúde materna e perinatal, e depois doutorado, com especialidade em oncologia ginecológica e mamária, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Com uma dose de coragem e outra de atrevimento, como ela mesma diz, submeteu um pedido para complementar e finalizar a pesquisa da tese na Harvard Medical School, e foi aceita. O problema era conseguir o dinheiro para ir para lá. Então se inscreveu em um concorrido programa da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), em busca de financiamento. A avaliação considerou toda a trajetória acadêmica, relevância da pesquisa e da instituição internacional, além de publicações em revistas científicas. Foi selecionada.

Insegura com seu inglês – ela só pôde começar aulas de idioma depois de adulta – e com o dinheiro da bolsa contado, ela embarcou para os Estados Unidos no dia 28 de janeiro de 2020. “Tinha que fazer dar certo, economizar até o último centavo, porque eu sabia que eu não ia ter ninguém ali me bancando se alguma coisa desse errado.”

Pandemia

PUBLICIDADE

Todos sabemos o que aconteceu em março daquele ano: a transmissão da covid atingiu o nível de pandemia. Por alguns meses, Marcella seguiu a pesquisa remotamente, dos Estados Unidos mesmo. Mas, aos poucos, pode voltar ao trabalho presencial.

Já tinha recebido a primeira dose da vacina da covid-19, quando, em fevereiro de 2021, recebeu uma ligação do pai informando que ele testara positivo para a doença. “Foi uma saída pontual que ele teve de fazer para algo relacionado ao trabalho dele”, diz ela, sobre a suposição da família de como ocorreu a infecção.

De certa maneira, foi a partir desse momento que Marcella conseguiu vislumbrar a dramaticidade da pandemia em terras brasileiras. “Não tinha muita noção de como as coisas estavam no Brasil”, fala. “A pandemia no nosso País assolou de uma maneira muito cruel as famílias.”

Publicidade

Apaixonada pela ciência, Marcella foi tomada por uma sensação que não consegue explicar de que o pai iria morrer. Esperou apenas receber a segunda dose da vacina para pegar às pressas um voo para o Brasil.

“Não foi uma decisão, foi um impulso. Algo dentro de mim que me empurrava”, recorda. Quando entrou naquele voo sabia que talvez não conseguisse voltar aos Estados Unidos, em um contexto de embaixadas e consulados fechados, e que talvez não conseguisse completar o doutorado por lá. Naquele momento, isso importava menos do que a esperança de ver o pai, de quem sempre foi muito próxima, vivo uma última vez.

“Tenho um DNA muito aguçado da parte que meu pai me deu”, brinca. “Um dos principais legados que ele deixou para mim é a forma de olhar para vida. Sempre falava aquela frase: ‘A vida é a arte do encontro’.” A frase é de uma canção de Vinicius de Moraes, o Samba da Bênção, que, adverte, logo em seguida, “Embora haja tanto desencontro pela vida”.

Marcella Cardoso e o pai, Luiz Carlos Cardoso Foto: Arquivo Pessoal

Porém, o encontro que Marcella tanto queria não ocorreu. Ela até conseguiu chegar a tempo, mas não pôde visitar o pai durante a internação pelas restrições impostas na época. Seis dias após desembarcar, recebeu a notícia de que ele havia falecido após uma súbita melhora – estava, inclusive, fazendo o desmame do respirador.

Restam as memórias dos momentos dramáticos, como quando ficaram 24 horas sem qualquer notícia do estado dele, e do enterro, de caixão fechado, no qual ela não pôde abraçar a mãe, que ainda não estava vacinada. Ficaram também os momentos bons ao lado de Luiz Carlos.

A descoberta

Após a morte do pai, Marrcella ficou quatro meses ainda no Brasil enquanto esperava uma autorização excepcional para voltar à sua pesquisa nos EUA, o que foi possível graças a uma elogiosa carta da Harvard Medical School. Já em setembro, defendeu a tese de doutoramento. “Gostaria muito que meu pai estivesse presente.”

Além da aprovação, recebeu, já no dia seguinte, o convite para o primeiro pós-doutorado. E em mais uma decisão “atrevida”, pediu para liderar a pesquisa de Sars-Cov-2, o vírus causador da covid, que, à primeira vista, parecia algo muito distante do que estudava antes. “Mas, na verdade, eu estava estudando imunologia desde o meu mestrado.”

Publicidade

No Samba da Bênção, Vinicius de Moraes diz que: “(...) pra fazer um samba com beleza // É preciso um bocado de tristeza”. Marcella prova que isso também pode ser verdade para a ciência.

Marcella Cardoso no Massachusetts General Hospital Foto: Arquivo Pessoal

Os anos seguintes foram dedicados a entender como o vírus da covid fugia de nosso sistema imunológico. Isso porque, quando o vírus entra em nossas células, ele quer se reproduzir e, para ter sucesso, precisa enganar nossas defesas.

Dentro da nossa primeira barreira de defesa, a chamada imunidade inata – com a qual nascemos e que se consolida nos primeiros anos de vida –, existe um grupo de células chamadas NK, uma sigla para natural killers, em inglês, ou assassinas naturais, em tradução livre. “É o soldadinho mais forte.” Elas ficam monitorando as demais em busca de um sinal de que algo está errado.

Quando uma célula é infectada por um vírus ou passa por uma mutação em uma tumorigênese (produção de tumor), ela tem mecanismos para avisar que não está bem e precisa ser eliminada. Um deles é mandar as proteínas MIC-A e MIC-B para a superfície celular, o que permite que as NK possam se ligar a ela e eliminá-la.

“O que acontece na covid? O genoma do coronavírus tem uma proteína acessória, que é a ORF6″, explica Marcella. ”E quando sua célula infectada vai recrutar as MICs para a superfície da célula, o vírus produz a ORF6, que se liga às MICs e, como se fosse uma vassourinha, as remove.”

Dessa maneira, consegue passar despercebido pelas células NK. “Elas não conseguem detectar que uma infecção está acontecendo. Foi isso que aconteceu com os pacientes que desenvolveram a forma severa da doença. Não foi só porque tinham alguma comorbidade, alguma deficiência no sistema imune ou porque não foram capazes ou fortes o suficiente.”

Embora as comorbidades, isto é, uma série de problemas de saúde prévios, sejam fatores de risco para o quadro grave da covid e óbito, elas não são uma sentença, mas sim implicam uma maior probabilidade de agravamento. Para se ter uma ideia, um estudo publicado na revista científica Frontiers com mais de 21 mil pacientes brasileiros vítimas da covid entre 2020 e 2022 apontou que quatro a cada dez tinham ao menos uma comorbidade.

Publicidade

É válido destacar que a OFR6 também está presente nos casos leves, tudo é uma questão de tempo, segundo Marcella. “Um dos motivos da infecção evoluir provavelmente é pela ação continuada do vírus. Todo vírus precisa de um número mínimo circulante para que a infecção aumente. E esse mecanismo faz com que esse número crítico seja atingido”, explica.

“Uma vez que a multiplicação viral é rápida, esconder esse vírus dentro das células é uma parte do sucesso do vírus. Ele tem que se esconder dentro das células até que a infecção seja potente o bastante para o vírus entrar na fase aguda.”

Para chegar até esses resultados, a equipe de Marcella conduziu testes em células pulmonares e camundongos (que receberam tecido pulmonar humano num processo chamado de xenotransplante), além da análises de sangue — mais especificamente do soro, isto é, sem fatores coagulantes — de pacientes que tiveram covid. Marcella fez questão e coordenou uma “megaoperação” para importar também amostras brasileiras de dois estudos da Unicamp, além das americanas.

Essas amostras brasileiras foram coletadas entre 2020 e 2021. “Qualquer um deles poderia ser meu pai.” Fora, obviamente, o significado que isso teve para Marcella enquanto brasileira — a diversidade étnica numa pesquisa é importante para validar os resultados e para uma universalização deles.

Flávio Guimarães da Fonseca, virologista e professor da UFMG, que não está envolvido na pesquisa, considera a descoberta importante. “Toda vez que a gente descobre mais um fator acessório que pode ajudar nosso sistema imune a eliminar mais eficientemente ainda um vírus, você bota um tijolinho que vai montando esse muro que é importante para contê-lo.”

O professor reforça que, na visão dele, muito provavelmente essa estratégia, de varrer as MICs, se soma a outras que ajudam a explicar como o vírus a escapar do sistema imune. Estudos já apontaram, por exemplo, que o coronavírus afeta a produção do interferon, uma molécula antiviral que - como o próprio nome diz - interfere na replicação viral.

Tratamento

Mas o que, de fato, faz os olhos de Marcella brilharem foi a descoberta seguinte. Eles resolveram testar um anticorpo monoclonal — proteínas fabricadas em laboratório que imitam a capacidade do sistema imunológico de combater patógenos nocivos, como o coronavírus —, o 7C6, que já passava por ensaios pré-clínicos (ou seja, em animais) no tratamento de tumores, que, como já citamos, também podem enganar as células NK.

Publicidade

Para isso, eles infectaram células que mimetizam as do tecido pulmonar com o vírus vivo — algo bastante difícil e que requer trabalhar em um laboratório de biossegurança de nível três (o máximo é quatro) —, e, depois, injetaram o anticorpo monoclonal. A comemoração veio quando perceberam que o 7C6 se ligava às MICs e não permitia que elas fossem varridas pela ORF6.

Isso significa que ele pode ser ao menos parte de um possível tratamento para a doença. É claro que essa hipótese ainda precisa ser investigada de forma mais aprofundada. Algo que já está no horizonte da equipe. “Estamos atualmente trabalhando no desenvolvimento de modelos animais para abordar esta questão a ser relatada em estudos futuros”, escreveram no artigo.

“O que mais me deixa feliz é que é um tratamento possível, e um tratamento barato”, diz Marcella.

Na opinião do professor Flávio Guimarães da Fonseca, embora o 7C6 tenha um potencial terapêutico interessante, sozinho dificilmente conseguirá combater a infecção, porque não ataca uma estrutura diretamente responsável pela replicação viral dentro da célula.

Futuras pandemias

Mais de sete milhões de pessoas morreram por causa da covid no mundo, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil, foram 711 mil óbitos, cerca de 3,1 mil neste ano.

A continuidade da circulação do vírus, por si só, já é motivo para comemorar descobertas como a da equipe de Marcella. Mas a descoberta deles é um alento também na preparação para futuras pandemias. Algo que os cientistas estão certos que irá acontecer, e talvez mais rápido do que possamos imaginar.

Isso porque, de acordo com Marcella, a proteína ORF6 é o único gene conservado dentro dos vírus do subgênero Sarbecovirus que afetam mamíferos. E esse grupo é de bastante preocupação para os cientistas, pois o Sars-Cov-2 não foi o primeiro a saltar de um hospedeiro animal (em um processo chamado, em inglês de spillover) para os seres humanos.

Publicidade

No outono de 2002, o Sars-Cov (ou Sars-Cov-1) causou um surto - abortado a tempo de se tornar uma pandemia, mas com potencial para tal -, e se espalhou por quase 30 países, além de causar mais de 8 mil casos e pouco menos de mil mortes.

Dez anos depois foi a vez do MERS-CoV, que é um vírus transferido para humanos a partir de dromedários infectados. Foi identificado em animais de vários países do Oriente Médio, África e no sul da Ásia. No total, 27 países notificaram casos desde 2012, e 858 pessoas morreram, de acordo com a OMS.

“Prevemos, com um certo grau de certeza, que novos processos de spillover envolvendo coronavírus vão acontecer”, alerta Fonseca.

“Precisamos utilizar de todo o nosso arcabouço já conhecido para que possamos nos unir e estarmos muito preparados para que, quando uma nova pandemia chegar, não sermos devastados como fomos na da covid”, diz Marcella.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.