João Donato lança caixa com três discos inéditos

Músicas gravadas entre 1978 e 1989 nunca foram lançadas pelo pianista

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Por Julio Maria
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Não foram um nem dois, mas três os elos perdidos deixados por João Donato. Se o próprio acreano foi considerado por anos uma espécie de óvni na música brasileira desde sua chegada ao Rio, em 1945, imagine o que diriam das gravações consideradas obscuras demais. Essas nem virariam álbuns. 

“Nem vem que eu não gosto de meninos prodígio”, disse Ary Barroso ao ver o menino de 12 anos querendo participar de seu programa de rádio com um acordeão grudado no peito. Era um sinal. O que viria depois, até que ele se tornasse o cultuado João Donato, seria muito pior.

Janela da Urca. O músico em sua casa, no Rio Foto: WILTON JUNIOR/ESTADAO

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Um rápido retrospecto fica assim: Donato chegou ao Rio do Acre cheio de vontade de entrar na turma. Perambulou o quanto pode, mas sentia que não se encaixava nas sonoridades dos anos 50 com facilidade. Partiu para os Estados Unidos. Lá, perambulou o quanto pode ouvindo dizer que aquilo que fazia não tinha serventia por não se tratar nem de música brasileira nem de jazz. Acabou salvo pelas orquestras latinas de Mongo Santamaria e Tito Puente.

Voltou ao Brasil com a bossa nova em pleno vigor físico e, de novo, perambulou até ouvir de Agostinho dos Santos que sua música era linda, mas deveria ter voz. Quando já pensava em deixar tudo e voltar a perambular pelos Estados Unidos, Marcos Valle o pegou pelo braço e o levou ao estúdio para gravar Quem é Quem?, disco que só ganharia show de lançamento 41 anos depois, em 2014.

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O que viria depois seria melhor, mas Donato nunca se livraria dos momentos de incompreensão sobre o que fazia e de algum grau de impotência sobre a própria produção. Seu fluxo criativo incansável dos últimos anos em nada se parece com o sumiço de seus álbuns de estúdio entre 1975 e 1996 (em 1986 saiu um milagroso Leilíadas). A retomada de fato seria com Coisas Tão Simples. Donato gravou três discos que jamais lançou e que só agora chegam à luz. Gozando a Existência é de 1978; Naquela Base é de 1988 e Janela da Urca é de 1989.

Os três, mais um álbum especial de raridades, são lançados agora pelo selo Discobertas, do produtor Marcelo Fróes, em uma caixa de nome A Mad Donato (alusão ao disco A Bad Donato, de 1970, uma preciosidade).

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O projeto nasceu com um susto. Em 2014, autorizado por Donato, Marcelo Fróes abriu um armário na casa do músico e caiu para trás. “Havia ali umas 800 fitas cassete. Eu pirei.” Todo o material estava incrivelmente organizado, com datas de gravação e fichas técnicas, como se estivesse sido cuidado por um fã. “Ele mesmo deixava esses projetos para trás.” Gozando a Existência, de 1978, pode ser considerado o mais emblemático dos materiais da arca de Donato. 

Conhecido também como Prossiga, o álbum experimental de Donato estava previsto para ser um disco triplo. Com um estúdio da gravadora a seu dispor, cedido pelo bom coração de Roberto Menescal, ele recebeu, entre setembro e outubro de 1977, e outras sessões em julho de 1978, um batalhão de músicos e amigos para gravar tudo aquilo de que nem Donato fazia noção do que seria. Sem nenhum arranjo escrito, juntou gente que não acabava mais. Djalma Correa, Ed Maciel, Eloir de Moraes, Erasmo Carlos, Helvius Vilela, Lysias Enio, Marku Ribas, Maria Helena Toledo, Orlandivo, Vinicius de Moraes, Nara Leão, Miúcha, Cristina (Buarque), Alaíde Costa, Rosinha de Valença, Beth Carvalho, Gal Costa, Quarteto em Cy, Luiz Alves, Dominguinhos, Jackson do Pandeiro, Fernando Leporace, Novelli, Luizão, Robertinho Silva, Nelson Angelo, Luiz Bonfá, Marcio Montarroyos, Bill Horn, Mauricio Einhorn, Franklyn, Paulo Moura, Djavan, Chico Batera, João Palma, Dori Caymmi, Paulinho Jobim, Guarabyra, Walter Queiroz, Paschoal Meirelles, Laércio de Freitas, Telma Costa, Georgiana de Moraes. 

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Era gente boa até demais, tanto que o próprio Donato perdeu o controle da coisa. A uma certa hora, nem ele sabia quem tocava o quê. Três bateristas, dois baixistas, outros três guitarristas. Nem as fichas técnicas deram conta de explicar quem é quem no álbum mais ousado de Donato. Ele fala sobre aquelas tardes de estúdio livre. “Foi todo mundo pra lá sem cobrar nada, imagine. ‘Vamos fazendo o que a gente quiser fazer’, eu disse a eles.” Se tem vontade de mudar algo ao ouvir as gravações? “Ah, ficou livre até demais, um pouco pra lá de à vontade. Eu deixei o barco correr muito solto. Faltou uma direção.”

No repertório, aparece um Djavan com a voz jovem cantando a bela Canto da Lira e Alaíde Costa fazendo um voo psicodélico com a voz no tema título, Gozando a Existência. Três músicas acabariam sendo lançadas no disco Clube da Esquina 2, de 1978. “Como a gente não lançou o disco, eles (os autores) levaram suas músicas para o disco do Milton. Normal, não fiquei bravo não”, lembra Donato. As músicas são Olho D’água, de Paulo Jobim e Ronaldo Bastos; Testamento, de Nelson Angelo e Milton Nascimento; e Toshiro, de Novelli. “Ficou mesmo um disco quase psicodélico”, diz João, quando o mundo pensava já conhecê-lo por inteiro.

DESTAQUES DA CAIXA

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Palhaçada (Silvio de Carvalho)  Gol da Coreia (João Donato)  Não Tem Nada Não (Donato, Marcos Valle, Eumir Deodato)  Bananeira (Donato e Gilberto Gil)  Gol da Alemanha (João Donato)  Zra Zra  (Fernando Leporace)  Toshiro (Novelli)  Testamento  (Nelson Angelo  Milton Nascimento)  Canto da Lira (com Djavan)  Gozando a Existência  (com Alaíde Costa)  Lua Dourada (Donato e Fausto Nilo)  Pelo Avesso (João Donato e Lysias Enio)  Entre o Sim e o Não  (João Donato e Abel Silva)  Não Tem Quando (João Donato)  O Amor Se Derrama (Donato, Antonio Cícero e  Paulinho Lima)  Nua Ideia (Donato e Caetano Veloso)  Bounce Blues (João Donato)  A Paz (João Donato  e Gilberto Gil)

O material inesgotável de um especialista em arquivos

Marcelo Fróes prepara ainda discos raros de Jerry Adriani, Jards Macalé e, se tudo der certo, de Erasmo Carlos

O incrível material encontrado por Marcelo Fróes nos armários de João Donato deve render mais projetos, segundo o próprio responsável pelo Selo Discobertas. “De João Donato, por mim, esse é apenas o primeiro box”, diz ele. “Pretendo agora fazer um com shows dos anos 80.”

Um fuçador profissional, o produtor adianta novidades de seu Selo Discobertas. Jards Macalé deve ser o próximo. “Fechei um box com Macalé antes de ele viajar, no final de janeiro. Serão quatro CDs ao vivo, gravados nos anos 1970 e 1980.”

Fróes começa a chegar a uma conclusão surpreendente para quem não é do ramo. As fitas cassete têm um valor e uma durabilidade muito superior ao que diz a cultura que se criou sobre ela, nos anos 80, quando os CDs começaram a chegar. “Nunca tivemos bons aparelhos para tocar fitas cassete no Brasil.

Era sempre um Gradiente ou um CCE daqueles, sem qualidade alguma. Ouvindo agora em aparelhos importados, vejo o quanto elas têm qualidade.” Fróes conta que, em 2003, ele insistiu muito para que a gravadora EMI lançasse uma gravação de Renato Russo encontrada em uma fita cassete. Boomerang Blues. A música saiu recentemente, como tema da novela O Outro Lado do Paraíso.

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Outros projetos do produtor são um disco com Quarteto em Cy e um outro ao vivo gravado pelo roqueiro Jerry Adriani, morto no ano passado. Aliás, é Fróes quem já estava fazendo a biografia de Jerry antes do cantor adoecer e ser internado, no ano passado. E há mais: “Estou esperando a chance para ouvir umas coisas muito bacanas com o senhor Erasmo Carlos.”

A MAD DONATO. Caixa de João Donato (4 discos). Selo Discobertas / Preço médio: R$ 89. 

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