Zé Ramalho abre os arquivos dos anos 70

Prestes a completar 40 anos de seu clássico ‘Avôhai’, paraibano tem registros inéditos revelados em caixa com três discos do 'trovador do Nordeste'; uma biografia também esta sendo feita

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Por Julio Maria
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São quase 40 anos desde que Zé Ramalho da Paraíba chegou ao “Sul Maravilha” nas asas de um ser alado. Era ele o “trovador do apocalipse”, o “Bob Dylan do Nordeste”. “Meu trabalho era um dado novo num momento em que foi iniciado, em 1978, quando saiu o primeiro disco. E as referências a Dylan, aos violeiros, são dados reais da minha formação musical”, diz Zé ao Estado, por e-mail, em um momento de revisionismo. Aos 68 anos, o homem que criou uma das linguagens mais originais na música brasileira abre suas gavetas.

Zé Ramalho, que também vai ser retratado em biografia Foto: ISABELA KASSOW

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O selo Discobertas, do produtor Marcelo Fróes, lança nesta semana o box Zé Ramalho Anos 70, com registros inéditos da década de diamante em três CDs. O primeiro, Demos, traz sete faixas registrada em uma ocasiões diversas. Estão ali os blues Frágil e Jacarepaguá Blues (gravadas no Teatro Aquarius, em São Paulo), e a seminal Avôhai, Jardim das Acácias, uma segunda versão de Frágil e um medley com Adeus Segunda-Feira Cinzenta e Espelho Cristalino (esta de Alceu, gravadas no estúdio da Phonogram em 1977).

Os outros dois discos tratam de momentos dos mais importantes do artista. A estreia nos palcos do primeiro álbum, que ficou conhecido como Avôhai, vencia o preconceito e as “panelas” estabelecidas depois de uma longa peleja. As músicas de Zé já tinham sido rejeitadas por quase todas as gravadoras (Phonogram, RCA, EMI-Odeon e Som Livre) e iriam parar da CBS por intercessão de Carlos Alberto Sion. Os dois trazem então, cada um deles, um show. O primeiro é o lançamento de Avôhai no Rio de Janeiro, em 1978, gravado no Teatro Tereza Rachel. O segundo é de um mês depois, quando o show aterrissa em São Paulo, no teatro Nydia Licia, em novembro do mesmo 1978. A diferença dos repertórios é pequena. No show do Rio tem A Noite Preta e Vila do Sossego. Em São Paulo, saíram as duas e entrou Mote das Amplidões. Zé se prepara ainda para ter sua história contada em biografia escrita pela jornalista Christiana Fuscaldo, ainda sem data de lançamento. Ao Estado, ele conta ter autorizado o livro há três anos, o que, diz, não significa controle. “Mesmo tendo autorizado, não significa que eu vá ler.”

Curioso ler matérias de época saudando sua chegada. Você é apresentado como "um Dylan do Nordeste" por muitas delas. Nelson Motta o chama, no Globo, de "o violeiro do Apocalipse". O Estadão chega a chamá-lo de "um integrante da Tropicália". Acredita que a imprensa, os críticos, entenderam a música e a linguagem que você trazia naqueles anos 1977, 1978?

Esses jornalistas que me descreviam com essas referências, buscavam-nas para poder explicar o que estava acontecendo. Isto é: meu trabalho era um dado novo num momento em que foi iniciado, em 1978, quando saiu o primeiro disco. E as referências ao Dylan, aos violeiros, são dados reais da minha formação musical. O tropicalismo não é tão notório, na minha opinião, mas escutei muita coisa na época e pode ser que numa música ou outra apareça alguma semelhança. Mas os dados mais reais são: violeiros, Bob Dylan, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro. São os mais claros, além da  fusão do rock que eu absorvi, escutando tudo que podia.

Existe uma inquietação social nas suas letras, desde 'Admirável Gado Novo', talvez um dos discursos mais fortes que já estava no show que fez de 'Avôhai' em São Paulo, 1978. O Brasil de hoje ainda se encaixa no que você já dizia?

Se encaixa porque essa letra é atemporal. Ela não está presa a uma época da história política brasileira. Para sempre as classes sociais irão ser oprimidas e ao mesmo tempo beneficiadas por algo ou algum acontecimento extraordinário e o “Admirável Gado Novo” é isso. A classe marrom, que o Aldous Houxley mostra no “Admirável Mundo Novo” é a classe do povo, que sempre existirá. E fiz essa música sem estar pensando em nenhum partido político. Sou assim até hoje. Nunca dependi, nem dependo de nenhum partido político para fazer meu trabalho. Em 40 anos de carreira, entraram governos, saíram governos, entraram partidos, saíram partidos e eu continuei até hoje, passando por todos eles, sem ser cabo eleitoral, nem peão de partido nenhum.

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Antes que você começasse a explicar a origem de 'Avôhai', ela já ganhava força. O que faz com que essa música se comunique com tantas pessoas por esses 40 anos, mesmo com aquelas que não sabem seu significado ou seu contexto?

A espiritualidade e o sobrenatural que existem nessa música são pressentidos por todas as pessoas que a ouviram e se envolveram com ela. Certa vez perguntaram a uma pessoa simples na região amazônica, um nativo:  “O que você acha dessa musica, você entende alguma coisa?” E ele respondeu: “Não entendo nada, mas acho bonito.” A energia que ela passa para o ouvinte é que torna o fato sobrenatural, real. Porque quando a pessoa ouve, sente algo diferente na história que estou contando. Ela une todas as pessoas, porque todos nós tempos nossos antepassados. E os nossos antepassados tiveram os seus antepassados e nesse recuo genealógico iremos chegar no homem de Neanderthal. Avôhai junta tudo isso.

Alceu, o pessoal do Ceará, Fagner, Belchior, Amelinha, Geraldinho Azevedo, Elba, Cátia de França. Acha que pode ter faltado união entre vocês, como fizeram os baianos (Caetano, Gil, Gal, Bethânia), para mostrarem a força de uma turma com linguagens fortes que se comunicavam entre si? Um movimento que poderia ter tido um nome, uma identificação ainda maior na história, como os baianos fizeram com a Ttropicália e os cariocas com a bossa nova? 

Só que esses baianos de que você fala se organizaram em quatro, era um quarteto. E a Bahia é Nordeste também. Nós somos pós-tropicalistas e não trouxemos nas nossas músicas a referência que esses tropicalistas faziam ao seu estado. Tudo tinha a Bahia no meio. Nós não fizemos turismo nas nossas letras. A união de que você fala não foi semelhante à desses autores tropicalistas. Poderia ter sido, mas não foi. Mesmo assim, cada trabalho apresentado tinha uma unidade de geração. Todos os autores eram pensadores, filósofos, e independentes. Ninguém dependia do outro para falar, nem cantar.

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E sobre as experiências espirituais, você as tem feito ainda? Outras músicas mais recentemente surgiram motivadas por substâncias ou mesmo sonhos? 

Estou caminhando para os 70 anos. Essas experiências ficaram, a maioria delas, na minha memória. É como disse o filósofo Nietzche: "O que não te mata, te fortalece.” Hoje sou mais comedido em relação a essas substâncias. Procuro, de vez em quando, ter contato com alguma delas, talvez com a mais natural de todas, a maconha. Tudo isso que aconteceu nesses 40 anos influenciou e aparece nas minhas músicas. Mas a experiência e o avanço no tempo, com esse meu trabalho, me deram status de sobrevivente que se tornou mestre.

Sempre me impressiono com a força messiânica de seus shows e a migração do público de Raul Seixas para suas fileiras de fãs. Queria saber de sua relação com eles, os fãs. Imagino que seja procurado por pessoas de todo tipo, algumas que podem esperar de você algo próximo de feitos milagrosos ou coisas do tipo. Isso acontece ou já aconteceu?

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Aconteceu, acontece e acontecerá. É natural que o tipo de música que eu faço, principalmente as letras, oferece ao fã viagens mentais, individuais, boto muita gente para pensar através das minhas letras, que são nada usuais e quando apareceram nos anos 70, foram de grande impacto. Recebidas por alguns jornalistas também, com rejeição e antipatia. Você não pode deter um rio porque ele esta sempre em movimento e se você tentar conter suas águas, elas vão se avolumar, vão sair pelos lados e seguirão em frente com novos rumos. Aqueles que tentaram me atrasar ou me impedir com suas explanações individuais não lograram êxito! Digo isso porque sobrevivi mesmo a tudo isso, ao preconceito contra os nordestinos, que muita gente ainda tem aqui no sul/sudeste.

Sua biografia também vem aí, conforme noticiado. Qual tem sido sua relação com a biógrafa (Christiana Fuscaldo)? Está acompanhando o que ela tem feito ou tem garantido liberdade de apuração. Há, em sua opinião, algum limite biográfico? Um território proibido, que não deve ser retratado no livro?

Essa biografia eu autorizei a autora há uns 3 anos. E o que ela colheu não sei ao certo porque não li, mas minha mulher, Roberta, recebe os escritos, lê e me passa alguma coisa, de vez em quando. Dá pra perceber que tem coisas interessantes e outras nem tanto. O problema é que a pessoa que faz uma biografia acha que conhece a vida do biografado por inteira e por mais histórias que tenha escutado e explanado no seu livro, todo o material será apenas uma parcial visão da história do biografado. Mesmo tendo autorizado, não significa que eu vá ler.

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