Nas rédeas do passado

MARCOS AGUINIS[br]Psicanalista, autor de O Atroz Encanto de Ser Argentino[br]Pelas riquezas de outrora chora o país que hoje vai às urnas, sem um projeto de modernização

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Vinte e sete milhões de argentinos votarão, hoje, na sexta eleição presidencial desde o fim da ditadura militar, em 1983. A senadora Cristina Fernández de Kirchner, atual primeira-dama, é a franca favorita para vencer o primeiro turno. A grande e principal dúvida é se alcançará 40% dos votos válidos. Se o fizer, e o segundo colocado ficar 10% atrás, não haverá segundo turno. Das nove pesquisas divulgadas na sexta-feira, seis indicam que o fará com folga. As outras três deixam dúvidas na margem de erro. "Se houver segundo turno, ela perde", aposta o psicanalista Marcos Aguinis. Aos 72 anos, Aguinis é um angustiado estudioso de seu país. Nos últimos anos, lançou três livros que se tornaram best-sellers. O primeiro, O Atroz Encanto de Ser Argentino (publicado no Brasil pela Bei Editora) é um lamento pelo que o país foi - um dos mais ricos do mundo até os anos 20 - e em que se transformou. "Hoje, a Argentina está dividida", ele observa. "Os Kirchners governam sem conversar com a oposição, não dão entrevistas. Fazem parecer que, como aconteceu no passado, a Argentina só funciona com presidentes totalitários." Está mais que dividida. Há ódio na Argentina urbana. É um país rachado, atormentado pelo fantasma de que nunca mais será o que foi. A decadência argentina tem um símbolo, na visão de Aguinis: Eva Perón. Evita. Carismática, sensível aos anseios do povo, hábil manipuladora, Evita pegou um país que tinha uma cultura de trabalho e o apresentou ao assistencialismo. Conseguiu vasto apoio popular - adoração. E ajudou a implantar um modo de governo, o peronismo, que se mantém no poder e empaca quaisquer chances de o país voltar ao passado de grandeza. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Aliás. As eleições de hoje serão decididas pela apatia do eleitorado? Houve apatia, mas ela está diminuindo. No início, a candidata oficial, Cristina Kirchner, parecia que ia conseguir o número de votos necessários para se eleger no primeiro turno. Mas a sociedade argentina está dividida e há ódio e rancor. Os 60% que não votarão em Cristina votam em qualquer um que não ela. Há um clima de hostilidade interna na Argentina. O que motiva o ódio? O governo de Néstor Kirchner partiu para o ataque contra todos os setores da sociedade organizada. Não há quem não tenha sido atacado ou desprestigiado pelo governo. O presidente nunca chamou ninguém da oposição para conversar, nunca deu entrevistas à imprensa. Ele usa o poder para manipular. Para parte da sociedade, é como se o governo estivesse dizendo que a Argentina não funciona bem como república. Como aconteceu em outros momentos do passado, parece que só funciona quando há um regime autoritário. Quem de fato apóia o governo? A população que recebe subsídios dos projetos sociais. É o povo menos informado e, portanto, mais fácil de manipular. Hoje, a cidade de Buenos Aires, a cidade de Córdoba, os grandes centros do país demonstram que votarão em peso contra Cristina Kirchner. Cristina terá por volta de 40%. Se conseguir um pouquinho mais, será eleita presidente no primeiro turno. Se tier um pouquinho menos, haverá segundo turno, no qual poderá perder. Há quem diga que, pela experiência parlamentar, Cristina Kirchner estaria mais propícia a negociar do que o marido. É uma esperança que muitos têm. Mas, como senadora, ela sempre foi muito agressiva, gosta de falar com o indicador levantado. Ela humilha e ofende quem pensa de forma diferente. Durante toda a campanha eleitoral, recusou qualquer debate e só deu entrevistas nos últimos dias, embora, pelo tom dessas entrevistas, dê para desconfiar que foram conversas combinadas para que certas perguntas não aparecessem. Cristina é mais popular que o marido, Néstor Kirchner? O porcentual de aceitação de ambos vem diminuindo. Há alguns meses, os analistas se perguntavam por que Néstor cedeu a candidatura a Cristina, que tinha menos aceitação que ele. De acordo com as pesquisas, o voto feminino vai contra ela. Alguns quiseram compará-la a Eva Perón, mas Evita tinha o apoio das mulheres e Cristina, não tem. Eva Perón tinha contato direto com os pobres e Cristina só tem pela televisão. Mas não há um mito argentino da mulher salvadora da pátria, à imagem de Evita? Eva Perón promoveu uma mudança cultural muito séria no país. Se analisarmos a história ignorando o mito, veremos que ela foi uma mulher com enorme sensibilidade social. Mas, ao dedicar-se a dar presentes aos pobres, foi mudando o que era uma cultura de trabalho para uma cultura de mendicância. Até hoje, o assistencialismo, os presentes dados antes das eleições ou durante a administração, vão contra uma cultura de trabalho e fazem com que o país não apenas empobreça financeiramente, mas espiritualmente. Essa é a herança de Evita. Há milhões de pessoas que se acostumaram a receber subsídio sem trabalhar. Não buscam mais trabalho. Isso acarreta em aumento de problemas com drogas, violência, etc. Numa de suas raras entrevistas, a senadora disse que, "se o rosto cair, cirurgia nele". Isso diz algo do ponto de vista psicanalítico? Na Espanha a chamam de "senhora botox". Ela tem também o hábito de trocar de roupa toda hora e uma compulsão pelas compras, daí seu outro apelido, "senhora shopping". Mas esses são traços pitorescos e menos importantes. Houve grandes líderes que tiveram suas extravagâncias, Churchill, De Gaulle. O importante é que ela mude seu estilo agressivo, porque a sociedade está dividida. Um traço positivo do qual temos indícios é que Cristina se afastará de Hugo Chávez (presidente da Venezuela) e se reaproximará dos países que fundaram o Mercosul. Quem sabe ela não apostará na fórmula de países que deram certo, como Irlanda, Austrália, Canadá, Estônia, países que saíram da pobreza para enriquecer. A Argentina depende hoje do dinheiro venezuelano? Essa foi uma negociação perturbadora. Para conseguir independência do FMI, que era considerado o grande satã, pagamos a Chávez juros três vezes mais altos que os cobrados pelo fundo. Mas Chávez é importante para Kirchner porque, por meio dele, Kirchner recupera algum prestígio no cenário internacional. Mas uma coisa é manter a relação econômica com a Venezuela e outra é uma aproximação política do governo Chávez, que os argentinos não vêem com bons olhos. Chávez não está tentando estruturar apenas uma ditadura na Venezuela, mas uma ditadura militar com traços stalinistas. E aqui nós lembramos bem de ditaduras militares. O kirchnerismo pode renovar o peronismo? Ele é uma nova versão do peronismo. O peronismo é um movimento sem ideologia no qual cabe da extrema esquerda à extrema direita, do marxismo ao fascismo. As diversas versões peronistas que tivemos no último meio século mostram que ele pode se apresentar com diferentes máscaras. A máscara do momento é progressista, mas é preciso entender bem o que significa esse progressista. Não há política de longo prazo para terminar com a pobreza, então não é de fato progressista. O kirchnerismo é, na verdade, a busca de concentração de poder de um grupo que não tem por objetivo a modernização do país. Os argentinos costumavam ser muito superlativos. Continuam? Somos menos. Sofremos tantos golpes que já não nos consideramos mais tão especiais. Felizmente. Era uma onipotência infantil que pretendia negar a realidade. A Argentina foi um dos países mais ricos do mundo. E foi empobrecendo, empobrecendo. Que marcas esse processo deixa no imaginário do povo? Estivemos entre os mais ricos pelos nossos recursos naturais, como a fertilidade do Pampa. Mas há países com excelentes condições que, no entanto, são pobres. Fomos ricos porque tivemos uma Constituição liberal muito bem costurada, de 1853, que estabeleceu rigor jurídico e uma democracia pluralista, produzindo uma prosperidade a partir das riquezas naturais que beneficiou todo o país. Tivemos paralelamente um programa educacional intenso que transformou a Argentina no país mais culto e alfabetizado da América Latina. Tivemos grandes escolas, grandes universidades e grandes editoras. No mesmo compasso, a Argentina soube gerenciar a integração dos imigrantes. Não temos conflitos religiosos ou étnicos. Muitos de nós têm a esperança de que, se deixarmos de lado o populismo, voltaremos àquele estágio. Por que o país decaiu? Após a década de 20, vieram o nacionalismo católico, o bolchevismo e o fascismo, três correntes que apresentaram uma mentalidade populista e autoritária. A partir daí, veio o golpe de Estado de 1943. Então aquilo que a Argentina foi durante 70 ou 80 anos foi-se degradando até chegarmos à situação de hoje. Somos um país que, não faz muito, acreditava ter condições de competir com o Brasil para liderar o continente. Hoje já estamos resignados, sabemos que o Brasil é muito mais do que a Argentina, apesar de seus graves problemas internos. O Brasil é uma potência continental, enquanto a Argentina é um devedor da Venezuela. Dá vergonha. Há saída? Os países sempre têm saída. Ninguém diria, 20 anos atrás, que a Espanha, depois de ter sofrido tanto na ditadura, seria hoje um dos países mais ricos da Europa. Também não havia quem imaginasse que a Irlanda, que era um país periférico, atrasado, progrediria tanto. Há pouco visitei a Croácia. Aquele é um país que se cansou de errar. Foi nazista, depois foi comunista, teve guerras étnicas. Foram grandes erros. Mas conscientizou-se de que errava demais, assumiu uma linha na qual há estabilidade institucional e segurança jurídica e é um país que está entrando na União Européia em excelentes condições. Pergunto a meus compatriotas: quando vamos cansar de errar? A decadência não atingiu as artes. No aspecto cultural, o progresso que a Argentina conseguiu na primeira metade do século 20 se manteve. É um mistério. Mesmo durante a crise de 2001 e 2002, sem nenhum dinheiro, os grandes concertos, as boas peças de teatro continuaram em cartaz. No setor cultural, há recursos humanos fantásticos aqui. Temos uma grande quantidade de pintores, músicos, escritores, atores, gente que trabalha muito e recebe prêmios internacionais. O cinema em particular, nos últimos anos, tem despertado muita atenção. O bicentenário da independência argentina será em 2010. Como o país chega às festas? A situação é difícil e preocupa. Não se parecerá em nada com o primeiro centenário. Para as festas de 1910 vieram o filósofo espanhol José Ortega y Gasset, o primeiro-ministro francês, Georges Clemenceau, Albert Einstein. Em comparação, este bicentenário chegará de muletas. De quanto tempo a Argentina precisa para voltar ao que foi? Temos condições de em 20 anos estar no nível da Espanha, mas é preciso trabalhar. Quem tem o poder, quem tem o dinheiro público e as condições de mudança é que deve indicar o caminho. Precisamos de uma tocha que nos guie. Se essa tocha não nos guiar, se ela se limitar a concentrar poder ou mesmo a apenas governar pensando em um dia após o outro, é muito difícil avançar. O que precisamos é de uma visão estratégica de longo prazo e um programa que tenha em vista 20 anos, um programa que seja cumprido ainda que mudem os governos. REALISMO "Sofremos tantos golpes que já não nos consideramos mais tão especiais. Éramos infantis" ESPERANÇA "Todos os países têm saída. A Argentina pode ser uma Espanha em 20 anos" QUINTA, 25 DE OUTUBRO Cristina adota boa vizinhança Se eleita, Cristina Kirchner manterá uma boa relação com o Brasil, que investiu US$ 6,8 bilhões na Argentina em cinco anos, disse ao Estado Ceferino Reato, autor de Lula, a Esquerda no Divã. Cristina aceitará a liderança do Brasil, "mas nunca a hegemonia".

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