Engana-se quem imagina que, na obra-prima Sor Juana Inés de la Cruz ou As Armadilhas a Fé, Octavio Paz conte apenas a história de uma freira bonita, intelectualmente brilhante, perseguidora tenaz do imperecível.

Juana Inés de la Cruz teve trânsito na corte do vice-rei da Nova Espanha mas, no auge da juventude, buscou refúgio num convento de concepção medieval para se tornar a maior poeta de língua espanhola. Como foi isso?
Para atingir as profundezas por onde mergulhou, o Prêmio Nobel de Literatura de 1990 não se atém à vida e a obra de sor Juana Inés. Disseca a sociedade retrancada e as instituições voltadas para o passado, marcadas pela Inquisição e pela Contrarreforma, num período em que a vanguarda do mundo e da cultura ocidental aprofundava o humanismo e a consciência crítica já encubadas pelo Renascimento e que depois geraram Descartes, Maquiavel e Hobbes que, por sua vez, desembocaram no Iluminismo e na idade da razão.
Diante da precariedade de informações, Octavio Paz envereda por ousada, porém convincente, psicanálise de Juana Inés. Ela não contou, realça ele, com a convivência de seu pai biológico e permaneceu afastada da influência do amante seguinte de sua mãe. Afundou-se na biblioteca do avô, sua principal referência masculina.
No seu tempo, o mundo das letras e do conhecimento permanecia vedado às mulheres. O caminho do casamento não a atraiu, seja porque sua condição de filha natural não lhe deixou opções decentes, seja porque a condição de casada lhe barraria o caminho para o estudo. Optou, então, pelos votos e pela clausura, mesmo não tendo vocação religiosa. Lá, lhe foi possível deixar-se tomar pelo mundo das letras.
Entre os pontos altos do livro, está sua enigmática relação com María Luisa Manrique de Lara y Gonzaga, a condessa de Paredes, vice-rainha da Nova Espanha. O autor refuta vigorosamente interpretações maliciosas. A proximidade gerou poemas intensos, mas não saiu, aponta ele, dos limites do platonismo. E foi decisiva para o reconhecimento que teve depois como diva da poesia, porque permitiu a publicação de seus escritos na Espanha.
Outro ponto alto foram os conflitos com seu confessor, o austero jesuíta Antonio Nuñez de Miranda, e com as duas mais importantes autoridades do seu tempo, o arcebispo do México, Francisco Aguiar Y Seijas, e o bispo de Puebla, Manuel Fernández de Santa Cruz y Sahagún.
Seu confessor, um dos principais responsáveis pelos rumos da Inquisição do Novo Mundo, sempre manobrou para barrar-lhe o caminho do conhecimento e arrastá-la para a vida de penitente. Os dois bispos, soberbos e rivais encarniçados, usaram Sor Juana Inés, para seu jogo e a empurraram para a derrota final. Para surpresa dos brasileiros, a peça decisiva de condenação foi o texto encomendado pelo bispo de Puebla, em que Sor Juana criticou o sermão do Mandato do jesuíta Antonio Vieira, que se notabilizara no Brasil.
É empolgante a análise que Octávio Paz faz do México daqueles tempos. Examina não só sua história e os conflitos crescentes entre espanhóis e criollos, mas, também, a origem e a evolução de boa parte de seus ritos, como a entrada triunfal de um vice-rei e as cerimônias da festa de Corpus Christi.
As avaliações da história e da cultura não se restringem ao México ou à América Espanhola. Lá são examinas, também, algumas das instituições transplantadas da Península Ibérica para o Brasil, cujas consequências ainda permanecem por aqui, como o regime patrimonialista, as relações incestuosas entre Igreja e Estado, o nepotismo e os valores encastelados da Contrarreforma.
Quando avalia os tesouros explícitos e ocultos da obra de Sor Juana, Octavio Paz, refuta as análises marxistas para as quais a produção artística não passa de projeção superestrutural das relações de produção. Também não aceita a concepção de Platão, para quem o real é cópia imperfeita das ideias imutáveis e a arte, cópia dessa cópia. “A ideia não é o modelo da arte”. Prefere vincular a arte e seus estilos a correspondências de uma época, como a obra de Michelangelo condiz com a vida de Florença comandada pela estirpe dos Medici.
O resultado da avaliação é a entronização definitiva da obra de Sor Juana entre as mais impactantes do seu tempo. Seu mais importante poema, Primero Sueño, é enigmática precursora do poema de Stéphane Mallarmé, Jamais un coup de dés n’abolira le hasard, e guarda intrigante paralelismo com as alegorias da seminal gravura de Albrecht Dürer, Melancholia 1, de 1514.
Sor Juana se vê ora como a deusa Ísis, a que ressurgiu das cinzas; ora como Narciso, que evaporou tão logo se conheceu; e ora como Faetonte, que perseguiu implacavelmente seus próprios limites e, quando os transgrediu, foi fulminado por Zeus. A vertigem também é fascinante.
Por dois séculos, Sor Juana e sua obra foram relegadas à condição de relíquia literária. Apenas recentemente voltou a ser reconhecida como grande escritora e precursora do movimento feminista. Talvez por isso poderia ter-se visto também como Cassandra, a que possuía o dom da mântica, a do conhecimento do futuro, mas que, por ter repelido o assédio de Apolo, foi condenada ao descrédito: ninguém acreditou nas suas previsões. Mas isso não está no livro de Octavio Paz.

SOR JUANA INÉS DE LA CRUZ OU AS ARMADILHAS DA FÉ Autor: Octavio PazTradução: Wladir DupontEditora: Ubu 608 págs., R$ 109