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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

'Eike' leva a sabedoria de Nelson Freitas à Netflix

Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Artesão da comédia, Nelson Freitas descortina todo o seu talento nas veredas do drama em "Eike: Ou Tudo Ou Nada" - fotos de @Desirée do Valle  Foto: Estadão

Rodrigo Fonseca "Eike: Tudo Ou Nada" tá na Netflix. É hora de correr e ver um dos filmes brasileiros mais arrebatadores do ano. Sua passagem pelo cinema atraiu elogios. Mas é hora de essa pérola se estabelecer como um fenômeno popular, ainda que na streaminguesfera. E a interpretação de Nelson Freitas, no papel principal, é de uma potência singular. É uma atuação que merece todos os troféus, quando o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro estiver sendo idealizado. Há um diálogo no subestimado "Wall Street: O Dinheiro Nunca Dorme" (2010) no qual Gordon Gekko (Michael Douglas) se vira, ameaçador, para seu rival (Josh Brolin), e lacra: "Pare de dizer mentiras sobre mim que eu paro de espalhar verdades sobre você". Percebe-se nesse diálogo o quão tênue é o limite que afasta a "meia verdade" da imaginação. Mas elas costumam ter o mesmo combustível: a necessidade de sobreviver. Na Economia, mentir e especular podem ser sinônimos na sobrevivência de um negócio. Na arte, por vezes, os dois verbetes comungam dos mesmos credos, como se lê no "Dom Quixote", de Miguel de Cervantes, a narrativa que (mais e) melhor norteia o entendimento do quão essencial "Eike - Ou Tudo Ou Nada" virou para o cinema brasileiro, no segundo semestre de 2022. E essa essencialidade não se trata apenas de hipóteses comerciais de que o filme produzido por Tiago Rezende possa virar um blockbuster em uma terra ferida pelas sequelas simbólicas da covid-19, coroando Nelson Freitas como um astro à altura de sua vitalidade em cena. Trata-se, antes disso, de estarmos diante de uma narrativa de verve autoral, que pode esgarçar extremos do pop no audiovisual de viés mais comercial praticado pelo audiovisual. Há, ali, o esgarçamento das fronteiras de gênero, numa mistura de comédia, drama de derrocada, alegoria política e, sobretudo, de thriller, propiciada pelo mais maduro trabalho de edição da montadora Maria Rezende, desafiando os códigos da aceleração. E há o esgarçamento de uma herança ibérica que vem do já citado Cervantes na opção de os diretores Andradina Azevedo e Dida Andrade (de "Bruta Flor do Querer") romperem com a legislação pétrea das biopic (as cinebiografias) e substituir o factual pelo fabular. O que vemos no roteiro inspirado em livro da jornalista Malu Gaspar (publicado pela Ed. Record), escrito pelos realizadores, é a fábula nietzschiana da inocência, onde formiga e cigarra são um bicho só, imoladas em sacrifício ao "capitalismo". Cervantes se materializa no devir Quixote do Eike esculpido a cinzel por Nelson Freitas, que gargareja sutileza, até uma sequência exasperante de desespero, em que espuma baba, qual um Klaus Kinski de escritório. Quem conferiu o desempenho de Freitas no longa "Demoninho de Olhos Pretos" (2008), de Haroldo Marinho Barbosa, revezando-se por diferentes tipos, com base em Machado de Assis, sabe o titã que ele é. Um titã que se desapega do ferramental de humor que adquiriu brilhando em "Zorra Total", sob a direção de Maurício Sherman, a fim de arriscar um outro espaço e um outro tempo do patético. Seu Eike nos leva ao Oliver Stone de "Wall Street: Poder e Cobiça" (1987), com a mesma cupidez de Gordon Gekko, só que fraco em sua espinha dorsal mercadológica.

 Foto: Estadão

Desapegando-se de vaidades, numa generosidade louvável com a plateia, Nelson faz de seu Eike (que não é, nem precisa, ser o Eike real, das notícias de jornal) uma espécie de Michael Douglas às avessas. Parece cheio de som e de fúria, mas não passa nem perto da barbárie de um Macbeth. O processo civilizatório achatou sua selvageria e confinou seu desejo de ser grande a uma histeria quixotesca. Nela, confunde moinhos de vento com gigantes. Enxerga amizades e cúmplices onde existem Iagos, traidores. É o caso do diretor executivo Laerte (Marcelo Valle, algébrico em sua habilidade de somar carisma e dualidade); do geólogo e bamba do petróleo Odorico, aka Dr. Oil, vivido por Xando Graça com precisão de relógio suíço; e do bajulador Nelson, vivido por Lippy Adler, um astuto arlequim da comédia a quem o cinema deveria valorizar mais. Dida e Andradina (que também assina a inquieta fotografia) dão valor a ele, assim como ressaltam a destreza da atriz Juliana Alves para dar vida à executiva Zita. São gestos de cuidado dos realizadores (conhecidos por desnudar a hipocrisia nossa de todo dia) que tonificam o filme. Mas é na esgrima entre Nelson Freitas e Thelmo Fernandes que eles encontram o que o longa tem de mais visceral - e poético. Contrariando exemplos históricos do cinema de empresários que galgam o Céu por sua destreza com os números (caso de "O Lobo de Wall Street"), o filme sobre Eike se lambuza em sua falibilidade quase ingênua, em sua condição de "carente", anunciada a dado momento por seu Sancho Pança, Benigno. Ele é o amigo de fé e irmão camarada a quem o bilionário esnoba, em sua sanha por riqueza e fama. Esse é o papel que extrai de Thelmo a grandeza que sua travessia pelos palcos sempre sugeriu e o cinema, vez por outra, vide "Giovanni Improta" (2013), fisgou. E aqui, numa potência máxima, ele liberta o canto de bodes em sua alma e nos dá um coadjuvante memorável. É Benigno quem mede o quão fraco é o cordeiro Eike, entregue aos chacais do capital financeiro, em suas ideias de Quixote. A ave de rapina não é ele, e, sim, o universo de prospecção de petróleo do qual anseia ser rei. Escorre de Eike o desejo nunca saciado de ser o homem mais rico do mundo. E esse o desejo o agrilhoa.

Carol Castro encarna Luma de Oliveira  Foto: Estadão

Na trama, percorre-se um breve e intenso período da vida de Eike, a partir de 2006, quando o Brasil passava por uma expansão econômica com o pré-sal. É ali que o empresário decide criar a petroleira OGX. O longa segue até a sua prisão, realizada em 2017, na Operação Eficiência, como um desmembramento da Operação Lava Jato. Eike foi acusado de fazer parte de um esquema de corrupção do ex-governador Sergio Cabral, preso desde 2016. Sétimo homem mais rico do mundo, numa enquete de 2012, ele foi do apogeu ao declínio em poucos anos, tornando-se um incômodo para empresas estrangeiras com quem negociava. Com uma fortuna estimada em US$ 30 bilhões, ele era o maior bilionário brasileiro e estava no auge com as empresas do grupo EBX (OGX, MMX e OSX). Em 2014, já não integrava mais a lista da revista "Forbes". O que o filme faz é apontar holofotes para os bastidores da partida de "Monopólio", que ele jogou com (ora contra) o Brasil, sem didatismos, deixando Nelson livre para esgarçar os limites da persona quixotesca que encarna. Sagaz, a montagem de Maria Rezende pontua situações pessoais de Eike como o casamento com a modelo e atriz Luma de Oliveira, de quem se separou após um escândalo de traição. É Carol Castro quem vive Luma, num trecho pequeno, ao qual ela, uma das melhores atrizes de sua geração, consegue dar ânimo e alma, empoderando sua Luma para além de moralismos. Mas o foco não são os amores de Eike e, sim, seu casamento com sua embriagadora ambição, que é narrada por Benigno (Thelmo) qual fosse Joel Grey em "Cabaret" (1972), de Bob Fosse: como o mestre de cerimônia de um circo de rins, fígados, desumanidade e brasilidades. De predador, Eike passa a Cavaleiro da Triste Figura, num filme exibido em pré-estreia no Rio, no Kinoplex Leblon, antes de seu lançamento oficial (próximo dia 22), na mesma data em que o planisfério cinéfilo deu adeus a Jean-Luc Godard (1930-2022). Contagiante, "Eike - Ou Tudo Ou Nada" ataca o mesmo inimigo que o realizador de "Acossado" (1960) combateu por seis décadas: a avidez capitalista.

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