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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

'Samaritano' é 'Shane', é Chaplin, é Stallone

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Dublado por Luiz Feier, Stallone regressa ao audiovisual, via Amazon Prime, no papel do gari Joe, em "Samaritano" Foto: Estadão

Rodrigo Fonseca Clicando a URL do https://www.primevideo.com/ a gente esbarra com "Samaritano", filme que Stallone optou por levar à streaminguesfera, sem passar pelo circuito exibidor, abrindo espaço para uma reinvenção de sua carreira pelas vias das plataformas digitais, onde vai militar ainda com a série "Tulsa King", a partir de novembro, via Paramount Plus. Mas há singularidades de se aplaudir de pé no mais recente trabalho do eterno Rocky, que dialoga com o Chaplin de "O Garoto" (1921) e (sobretudo) com "Shane" (1953). É um bangue-bangue de super-heróis, com uma toada primaveril, que injeta vida a uma paisagem de distopia. Seu maior achado é entrar na seara dos vigilantes sem tomar emprestado conceitos da Marvel e da DC. E a direção de Julius Avery casar ação e melodrama sem destoar nas doses de adrenalina. Um detalhe: a versão brasileira traz uma dublagem irretocável, com destaque para Luiz Feier Motta a ceder a voz a Sylvester. O desempenho de Feier amplia o que existe de Carlitos no protagonista. Chapliano em seu olhar para as lutas de classe na periferia de uma metrópole em decadência, "Samaritan" (título original) é uma conversa direta com a tradição de "Shane", o faroeste lendário de George Stevens (1904-1975), aqui traduzido como "O Brutos Também Amam". Em Stevens, a rotina do pequeno Joey (Brandon De Wilde) é modificada com a chegada de um forasteiro, com uma destreza acima dos padrões, que dá ao guri a atenção que seus familiares, afogados em inércia moral, não podem oferecer. Num Oeste de mil perigos, Shane vira pai emprestado de Joey por escolha, não por dever. É essa a dinâmica que Stallone pratica neste novo thriller de tintas fantásticas que surpreende por viradas de roteiro. Existe uma tese, não confirmada nos créditos de "Samaritano" no Internet Movie Database, ou IMDB (o maior banco de dados do audiovisual na web), de que sua argamassa é a HQ homônima de Bragi F. Schut, Marc Olivent e Renzo Podesta, criada na seara independente do quadrinho americano. Não há menções a ela no longa de Avery, que ganhou notoriedade ao rodar "Operação Overlord", lançado em 2018. O que o cineasta nos dá é um espetáculo de tensão, com coreografias de lutas e sequências de tiroteio exuberantes, e também um estudo de personagem tridimensionalizado. O que se vê em cena na Amazon Prime é o processo de redenção de um homem grisalho que fez da memória uma inimiga, e dedica seus dias a esquecer(-se) e ser esquecido, pra poder reaver o respeito próprio de outrora. Aí entra o laço filial de Sam, interpretado por Javon Walton. A mãe do guri, a enfermeira Tiffany (Dascha Polanco, ótima) é uma Anna Magnani naquela "cidade aberta" onde tudo se passa.

 Foto: Estadão

Na sinuosa trama, Sam cresce sob o rugido de balas, prometido para o crime, até ser salvo de uma surra letal por um lixeiro, Joe (Stallone), que tem superpoderes. Sam associa a força dele a de um vigilante de outrora, o Samaritano, que desapareceu após brigar com seu inimigo nº1, Nêmese, que portava uma marreta de energia. Sam cisma que Joe é o Samaritano. Este nega, até sofrer um atentado brutal e revelar quem de fato é. Isso no momento em que o chefão Cyrus (Pilou Asbæk) almeja encontrar o martelo de Nêmese e recriar um símbolo do Mal que inspire os degredados. A partir dessa premissa, o que se vê é um ensaio político contundente, carregado da natureza marxista, de exclusão dos pobres, que Stallone persegue desde "Rocky, Um Lutador" (1976). Seu novo personagem é um Balboa vindo de Krypton, mas com alma de Shane. Sua Kryptonita é a incapacidade de se perdoar. É um estudo sobre a ambivalência da memória, como calvário e como espaço de libertação.

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