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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

Vai ter David Fincher na madrugada da Globo

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:

RODRIGO FONSECA Envolvido neste momento com a finalização do thriller "The Killer", adaptação da HQ de Alexis Nolent com Michael Fassbender, David Andrew Leo Fincher vai completar 60 anos no dia 28 de agosto. Aniversaria cercado de prestígio a reboque dos elogios que colheu por "Mank" (2020), na Netflix, e por sucessos comerciais como o febril "Garota Exemplar" ("Gone Girl", 2014), que a TV Globo exibe nesta madrugada. À 2h40 deste sáabado, tem esse filmaço que custou US$ 61 milhões e arrecadou US$ 369,3 milhões, colecionando adjetivos da crítica e rendendo uma indicação ao Oscar para Rosamund Pike. A trama é decalcada de um best-seller de Gillian Flynn, também roteirista. Suspense sempre foi a matéria-prima do cineasta. Em sua estreia, "Alien 3" (1992), ele foi ao espaço, na companhia de um ET gotejante de ácido, e subverteu convenções da sci-fi clássica para construir um thriller intergaláctico, no qual o medo era mais impressionante do que a imensidão cósmica. Fincher é desses: nele, as menores sensações são mais singulares do que arenas agigantadas. É que o medo liberta demônios de um universo mais sombrio do que o firmamento da ficção científica: o universo da alma, no qual o que mais interessa ao cineasta nascido em Denver, há 59 anos, é observar os riscos do descontrole. De "Se7en" (1995) até "A Rede Social" (2010), passando pela obra-prima "Clube da luta" (1999), o cineasta narra histórias nas quais variáveis violentas desequilibram sistemas de relação pautados por um controle cartesiano. São variáveis ora fantásticas ("O Curioso Caso de Benjamin Button"), ora psicóticas ("Zodíaco"), mas sempre narradas com o esgarçamento máximo de padrões morais. Em "Garota exemplar" ("Gone girl"), seu décimo longa, a vaidade, o pecado capital favorito de Fincher, sedimenta o castelo de mentiras esculpido em torno do sumiço de uma escritora cujo casamento vinha mal. Toneladas de hipocrisia se amontoam sobre as ruas de Cape Girardeau, no Missouri, onde moram Nick Dunne (Ben Affleck, dublado por Jorge Lucas) e sua companheira, Amy (Rosamund Pike, na voz de Priscila Amorim), uma autora de livros infanto-juvenis de enorme êxito no mercado editorial. A infelicidade rege o cotidiano dos dois, embora poucos a percebam, pois, sob a beleza e o charme dos Dunne, reside uma suposta perfeição capaz de ofuscar a percepção de crises a olhos estrangeiros. Ela vive um dia a dia frustrado, ocupando-se de seus projetos literários. Ele abre um bar em sociedade com a irmã, Margo (Carrie Coon). Tudo na morada dos Dunne deles fede a falência, a cansaço, a desgaste. Esse fedor atinge a fragrância do desespero quando Amy some, misteriosamente, deixando como rastro de sua desaparição uma mesa de vidro estilhaçada e nenhuma hipótese de resposta visível. É aí que a vaidade - "o" objeto de estudo de Fincher - toma seu prumo e se faz ver: diante da já citada perfeição, Nick se vê obrigado a interpretar publicamente o papel do marido desolado com a perda da mulher. E, nessa interpretação de Nick, apoiado no carisma de Affleck, o cineasta exercita sua argúcia, na análise do comportamento humano, e nos mostra o quanto um homem vaidoso, acuado em sua própria autoafirmação, é capaz de se boicotar e trair o circo que armou.

Rosamund Pike tem uma arrebatadora atuação Foto: Estadão

Nick ri quando não deve e demonstra satisfação onde deveria expor um olhar de luto, o que vai levantando as suspeitas da Polícia, representada pela detetive Rhonda (a ótima Kim Dickens) e o implicante oficial Jim (Patrick Fugit). E, como tudo naquele quinhão do Missouri vive de aparências, o caso do desparecimento de Amy, vira, da noite para o dia. um picadeiro midiático, mobilizando a imprensa - em especial, programas sensacionalistas de entrevistas -, e fazendo do suposto calvário de Nick um assunto de interesse nacional nos EUA. Mas isso é apenas parte dos 149 fugazes minutos do longa, que, de sequência em sequência, corre pela tela com a velocidade de um trem-bala, ágil como se fosse um curta e não um longa-metragem. Da primeira meia-hora para frente, a Polícia vai virando o jogo e começa a olhar Nick por outros prismas, tentando encontrar nele um culpado - uma vez que uma pessoa tão perfeita quanto Amy não teria outros desafetos possíveis. Assim sendo, um cerco se arma e os pequenos delitos de Nick na vida a dois (incluindo seu affair com uma Lolita de 20 aninhos) ganham a tela conforme o diário de Amy nos vai sendo apresentado por Fincher. Ao mesmo tempo, vemos o que se passa na cabeça da personagem de Rosamund, onde reside fúria, revanchismo e criatividade. Numa atuação antológica, indicada ao Oscar, Rosamund mostra como a vaidade - sempre ela, né, Fincher! - pode chocar ovos de um dinossauro chamado perversidade. Resta saber quem é perverso: Nick, ela ou a América que produz padrões morais capazes de levar pessoas ao sufocamento. A fotografia sem rebuscamentos, que tinge essa história de realismo, é de Jeff Cronenweth.

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