Pernambucano José Luiz Passos fala do romance 'O Sonâmbulo Amador'

Autor é professor da Universidade da Califórnia e fez narrativa onírica em que revolve os diários de seu pai

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Foto do author Maria Fernanda Rodrigues
Por Maria Fernanda Rodrigues
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O pernambucano José Luiz Passos não depende de sua produção literária para pagar as contas, o que lhe confere calma para investir cinco, seis anos na escrita e reescrita de um livro - seu primeiro romance teve 16 versões. Há 17 anos, depois de uma graduação em sociologia, no Recife, e uma passagem rápida pela Unicamp, ele embarcou para os Estados Unidos para fazer doutorado em Letras e não voltou mais. Ficou nove anos na Universidade de Berkley e está desde 2008 na Universidade da Califórnia (Ucla), que o recebeu anos antes como aluno. Já deu aulas de português, de literatura latino-americana, brasileira e portuguesa, fundou o Centro de Estudos Brasileiros na Ucla e lançou, aqui, dois livros de crítica: Ruínas de Linhas Puras (1998), sobre Macunaíma, e Machado de Assis, o Romance Com Pessoas (2008).

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Acompanha a literatura brasileira contemporânea a distância e não pertence a nenhuma patota. E embora seja o mais recente autor do catálogo da tradicional agência literária Riff, não se preocupa em aparecer. Um pouco por isso o azar que deu recentemente não o incomodou: por poucos dias, perdeu a chance de participar da Granta Melhores Jovens Autores Brasileiros, que aceitava inscrições de autores nascidos a partir de 1.º de janeiro de 1972. Passos é de 21 de dezembro de 1971. "O caso virou piada, mas tal qual meu herói Jurandir, isso me isenta do confronto, do enfrentamento comigo, da possibilidade da falha", diz o escritor ao Sabático, de Los Angeles, em sua primeira entrevista sobre o delicado O Sonâmbulo Amador, nas livrarias na segunda-feira.

O novo livro nasceu, conta, como uma costela do romance de estreia, Nosso Grão Mais Fino (2009), sobre alguém que não consegue deixar para trás o que passou e se recusa a abandonar seus mortos. Àquela época, durante viagem que fez à usina de cana-de-açúcar onde nasceu e que pertenceu à sua família até seus 3 anos, em Catende, para pesquisas para o livro, ele se deparou com alguém que seria Jurandir, o herói em questão. Uma pessoa vivendo da nostalgia de épocas melhores. Mas o livro estava quase pronto e ele guardou a história. O Sonâmbulo Amador retrata alguém que também não consegue se livrar de seus demônios, mas precisa enfrentá-los.

Para contar essa história, José Luiz Passos se rendeu ao fascínio que envolve o mistério do sonho e, influenciado pela herança recebida do pai - um baú fechado a chave com cartas, diários e cadernos de sonhos -, escolheu um caminho inusitado e difícil. Por dois anos, pôs-se a escrever sonhos autônomos. Transformou os que lhe foram contados por outras pessoas e outros autores. Leu livros teóricos. Só depois, quando já tinha criado uma centena deles, é que montou sua trama. Ou seja, antes de saber o que seu personagem pensava, o que ia fazer e o rumo que daria à vida, Passos já sabia de que era feita a sua essência, conhecia seus desejos mais profundos e seus traumas mais doloridos. Assim, o enredo aconteceria ecoando o que já existia dentro dele e não seria meramente ilustrativo da vida diurna dos personagens, como geralmente se vê na literatura.

E a história é a seguinte: Jurandir, 60 e poucos anos, funcionário perfeito de uma indústria decadente, casado com a namorada da adolescência e amante de uma jovem moça, deixa a cidade em que mora no interior de Pernambuco, no fim dos anos 1960, para levar à capital documentos referentes a um acidente de trabalho com um rapaz de sua empresa. Ele, pai de um filho morto precocemente, solidariza-se com a mãe do jovem e tenta ajudar. Na viagem, tem um surto psicótico e do acostamento da rodovia, vê o carro da empresa descer a ladeira e explodir. Obra sua.

Essa não seria a primeira ladeira que representaria a sua derrocada. Ainda menino, um empurrão do melhor amigo e o carrinho de rolimã desembestou até a batida que o deixou manco para sempre. Outra ladeira acabaria com a vida do filho.

Isso tudo Jurandir conta já na clínica psiquiátrica para onde é levado não se sabe quando e não se sabe em quais circunstâncias. Há muitas lacunas na história - essa e a morte do filho, as principais. E são justificadas. Como parte do tratamento, o médico pede que ele anote suas lembranças e seus sonhos como forma de "retomar o prumo de sua vida e entender por que não consegue encontrar um lugar no presente", como explica o autor. E há coisas que mesmo durante ou depois do tratamento continuam indizíveis.

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Passos conta que resistiu à tentação de dormir com a caderneta ao lado. "Se fizesse isso, acabaria colonizando a imaginação do meu personagem." Como presente por ter resistido, permitiu-se contar um sonho seu, o último do livro, adaptado, claro, à realidade da história e do personagem. É o sonho mais diferente. Enquanto os outros mostram um pouco do mundo interno de Jurandir, esse tem um tom mais de futurologia. Não que ele preveja o futuro do personagem. O que mostra, na verdade, é o futuro que o sonhador queria: de despedidas, enfim. Porque, no fundo, é de despedidas, ou da impossibilidade de dizer as últimas palavras a quem se quer bem que trata este livro. E de amizade também, como a que Jurandir constrói com o enfermeiro Ramires, o seu, por assim dizer, Sancho Pança.

O romance é estruturado em quatro cadernos escritos na clínica Belavista, quando a relação do protagonista com a realidade está suspensa - ele vive ora a tranquilidade artificial proporcionada pelos remédios, ora a tristeza e a melancolia -, e uma parte final, espécie de carta, escrita dois anos depois da crise. Há quatro modos de narrar: presente, passado, sonho e a história que ele tenta escrever sobre a infância, pela qual tem fixação. Tudo isso no fluxo mental do personagem. "Jurandir oscila entre a lucidez e o autoengano. Há um desencantamento com humor, ternura e com carga tragicômica", comenta o autor, que não quis dar ao romance uma chave negativa. "Tento mostrar que mesmo num contexto de absoluta perda, alguém que teve sua humanidade subtraída e que é incapaz de chegar ao outro pode ter um espírito preocupado com a justiça das questões, com uma vida moral íntegra e o bem-estar dos seus."

Jurandir não chega a resolver suas questões. "Mas existe o processo de crescimento, de grandeza moral. Ele começa a rever suas amizades e faz um grande pedido de desculpas", diz Passos. E a vida segue seu curso. Para personagem e autor. "É uma sensação estranha de dever cumprido, de contar a história que acho que meu pai queria contar. Só percebi a dimensão da vontade dele de escrever quando, anos depois de sua morte, tive coragem de abrir o baú. O romance é meio que uma tentativa de acabar o que meu pai começou, mas sem usar a vida dele. Isso seria difícil demais."

Ainda há material por ler no tal baú, mas agora José Luiz Passos se ocupa das aulas de ficção contemporânea e de introdução à cultura brasileira no novo ano letivo, que começou na última quarta-feira.

O SONÂMBULO AMADOR Autor: José Luiz PassosEditora: Alfaguara(272 págs., R$ 39,90; nas livrarias segunda-feira)

 

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