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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|A nudez do Brasil

Não pode haver praga maior do que o contágio errático num mundo ancorado por trocas; o coronavírus desnuda a nossa onipotência

Atualização:

Em 1978, a ensaísta Susan Sontag publicou na revista New Yorker um ensaio intitulado Disease as Political Metaphor (Enfermidade como Metáfora Política) no qual ela se concentra no câncer - àquela época uma mazela fatal, mas não esquece a bíblica lepra como castigo divino; a peste bubônica e outras moléstias contagiosas como tuberculose e sifões. Cada qual com a sua etiqueta moral. O interessante, porém, é como ela relembra como alguns grandes pensadores relacionaram doença e sociedade. * Tive uma vivência familiar com a tuberculose, que acometia os apaixonados e os que sofriam - como acentua Sontag - de deficiência energética. Emagrecer em demasia (no Brasil, sinal de pobreza) era, com a tosse seca, um mal incurável e, eis o estigma: a tuberculose “pegava” - contagiava.

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Um dos meus tios se casou - prova de um amor honrado - com uma tuberculosa. Morreu de um câncer no pulmão e eu me pergunto se nas suas agonias ele não teria se juntado a sua amada. Não é por acaso que o livro A Montanha Mágica se passa num sanatório de tuberculosos - uma nação isolada de doentes - na qual todos comiam bem e tinham sua saúde religiosamente vigiada. Tal como nos países totalitários...

O autoritarismo, aprendo com Sontag, tal como o poder, isola. Entre nós, ter poder não significa responsabilidade pública solidária e incondicional prometida ao chamado “povo” - essa espécie de vírus pobre para muitos de nós. Pois o poder (um vírus coroado) é um claro transmissor de corrupção, coerção, intriga e perversão ideológica via consanguinidade e o seu equivalente - o companheirismo ideológico. O empoderamento é uma doença na qual mentir e enganar são sintomáticos (leia Hannah Arendt). O poder no Brasil (ou melhor: o poder à brasileira) ainda não encontrou sua vacina. Donde a sua onipotente inconsequência (sou meritocrático, mas quero que meu filho seja embaixador...) e incurável condescendência (esse eu conheço...). Doente, ele corrói vitalidade ética e rotiniza mentiras, primitivismo e violências - esses vírus da política.  *  Se a tuberculose tinha um ar romântico, a sífilis (de um outro tio) seria o preço do erotismo. Um sifilítico poderoso e genial, como o herói de Thomas Mann em O Doutor Fausto (de 1947). Tem sífilis e faz um pacto com o demônio para ser uma celebridade singular no mundo. A alegoria com o Hitler do nacional-socialismo é clara. * As doenças são graduadas. Um resfriado não estigmatiza como a lepra. Ao abordar doença e política, Sontag percorre um caminho conhecido pelos filósofos e antropólogos quando eles sugerem a aversão humana ao caos e à impessoalidade. A bruxaria não é uma irracionalidade, é um idioma, como diz Evans-Pritchard, para contornar infortúnios. Se há o inesperado, a sua personificação denuncia um mal-estar personalizado. Bergson menciona um fato crítico: na Primeira Grande Guerra, feridos por estilhaços demoravam mais tempo a sarar do que os atingidos por rifles inimigos. Neste caso, havia intencionalidade; no outro, havia um inaceitável acaso. * Não pode haver praga maior do que o contágio errático num mundo ancorado por trocas. Nada se iguala à desventura de enfrentar um inesperado e invisível vírus - um assassino sem rumo - num mundo motivado a tudo explicar. O coronavírus desnuda a nossa onipotência.

A pandemia é o que Marcel Mauss chamou de “fato social total”. Um evento que remete a muitas dimensões, rotineiramente lidas como isoladas (ou polarizadas), mas que são, como tudo na vida coletiva, interdependentes. No caso, a vida e a morte, o desprezo (expresso, para nossa repulsa, pelo presidente Bolsonaro) e a solidariedade. 

O vírus revela que temos mandões e regras demais que se contradizem. Somos legalistas e especialistas em indecisão: escolhemos não escolher como já disse alhures. O País não aprende a competir e, diante de uma doença mundial que atinge os ditos “desenvolvidos” (também de quarentena!), enxerga a contragosto o seu espantoso atraso, a sua constrangedora má-fé. 

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Opinião por Roberto DaMatta
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