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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Hoje tem matinê

Dizem que o imperador japonês Hirohito era fascinado pela ginga de John Wayne

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Atualização:

Leitores me pedem para falar mais de John Wayne, tema de meu artigo no Aliás do último domingo, e seu mentor, o cineasta John Ford. Oba! Cinema. Na certa, nos fará bem à alma tirar um pouco o foco do genocídio, das torpezas presidenciais, dos jabaculês civis, das mamatas militares, dos vexames diplomáticos, do fiasco econômico e desgraças afins.  Relaxemos e divirtamo-nos. Hoje tem matinê. Não tenho como nem razão para indultar Wayne pelas declarações racistas que ele fez naquela fatídica entrevista à Playboy, já lá se vão 48 anos. Também não sei se lhe aprimoram a imagem certos detalhes que meu limitado espaço no Aliás me forçou a pôr de lado, mas aqui vão alguns.  Wayne dava-se bem com os latinos, ao menos isso; especialmente com as latinas. Casou-se com uma filha de cubanos, depois com uma mexicana e uma peruana. Era profissionalíssimo, generoso com os colegas de ofício, afetuoso com a arraia-miúda do estúdio (fundamental virtude humana) e descontraído o bastante para não só aceitar como receber pessoalmente, e bem-humorado, o prêmio Brass Balls Award (c***ões de metal), anualmente concedido pela sesquicentenária revista Harvard Lampoon, editada pelos alunos da Universidade Harvard, ao qual fez jus por seu “pronunciado machismo” e sua propensão a encerrar discussões à irlandesa, ou seja, na base do sopapo. Não era fácil ser o caubói número 1 da tela e lidar com as demandas que seu status mítico impunha. Esconder a calvície, por exemplo. Se, no meio de uma briga ou cavalgada, lhe caísse o chapéu, qual seria a reação da plateia? Em 1948, já com 23 filmes na algibeira e antes de começar a rodar O Rasto da Bruxa Vermelha, Wayne estreou uma peruca que, a exemplo de James Stewart, Frank Sinatra, Humphrey Bogart e outros menos votados, nunca mais abandonou diante das câmeras. Seu insinuante andar de machão decidido, copiado do ator característico Paul Fix, figura fácil em centenas de westerns, nenhum outro ator ousou imitar. Dizem que o imperador japonês Hirohito era fascinado pela ginga de Wayne, sem falar de sua rapidez no gatilho. Conhecê-lo pessoalmente foi o primeiro pedido de Hirohito ao chegar em visita oficial aos EUA, no pós-guerra.  Em sua passagem por Hollywood, em 1963, o premiê soviético Kruchev fez questão de apertar a mão do ator, a quem confidenciou ter recebido a incumbência de assassiná-lo quando Stalin ainda mandava na Rússia. “Precisamos liquidar o maior símbolo do poder americano”, argumentou Stalin ao instruir Kruchev de planejar o atentado, delírio que, ainda segundo Kruchev, também passara pela cabeça do camarada Mao.  Embora republicano de raiz, Wayne comprou briga com seus correligionários ao se tornar amigo do democrata Jimmy Carter e defender a devolução do Canal do Panamá aos panamenhos. Não azedava amizades por discordâncias ideológicas. Nas três vezes em que contracenou com o progressista Kirk Douglas, democrata ferrenho, ambos evitaram tocar em política. O mesmo se deu com John Ford, conservador à sua maneira, mas democrata histórico, de firmes posições políticas e atitudes corajosas em momentos periclitantes da atividade cinematográfica.  Wayne tinha Ford como seu segundo pai. Só o chamava de “pappy”, fazia tudo para agradá-lo. Ford o tratava com extremo rigor e, por vezes, o humilhava diante dos colegas, com observações do tipo “fui eu quem te ensinou a usar papel higiênico”. Quem viu Depois do Vendaval conhece bem esse lado truculento do humor irlandês, tão cultivado pelo cineasta.  Ford e Wayne mataram um bocado de índios “de mentira” porque milhares de índios foram mortos “de verdade” nas décadas que antecederam a invenção do cinema. Numa entrevista concedida em Londres, no final da vida, o cineasta reiterou sua “desmedida simpatia” pelos índios. Recusava-se a usar figurantes brancos disfarçados de peles-vermelhas e exigia que eles, de resto pagos pela tabela do sindicato de classe, falassem em sua própria língua diante das câmeras. Seu derradeiro western, Crepúsculo de uma Raça, era uma elegia à luta pela sobrevivência dos cheienes em seu território de origem, em Montana. Os navajos do Monument Valley, a mágica locação em que Ford filmou No Tempo das Diligências, em 1939, e vários outros westerns, o chamavam de “grande chefe branco”. Em sinal de respeito e, sobretudo, gratidão pelo socorro à tribo durante uma nevasca, no inverno de 1948, quando eles, isolados no vale, só não morreram de fome e sede porque Ford acionou a tempo as equipes de resgate e abastecimento da Força Aérea.  Nos anos 20, iniciando-se na carreira em Hollywood, Ford ajudou a financiar o Exército Republicano Irlandês. O velho mestre das pradarias já era, na juventude, um sujeito surpreendente. Três décadas mais tarde, comportou-se de forma exemplar durante a caça às bruxas. Peitou o reaça Cecil B. De Mille numa histórica reunião no sindicato dos diretores, em outubro de 1950, ao tomar a defesa de seu presidente, Joseph L. Mankiewicz, hostilizado e quase deposto por De Mille por ser contra a instituição, naquela entidade, de juramento aos ideais americano e outras palhaçadas patrioteiras, de inspiração macarthista.  Embora se identificasse, modestamente, como um simples “fazedor de westerns”, sua obra é uma gesta incomparável sobre os quatro primeiros séculos da história americana. 

Opinião por Sérgio Augusto
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