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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Sobre Van Gogh e a morte de Robert Andrew Parker

Foi ele quem ‘dublou’, no filme ‘Sede de Viver’, o desorelhado gênio holandês – ou melhor, seu intérprete, Kirk Douglas

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Atualização:

Só esta semana tomei conhecimento de que Van Gogh morreu no último Natal, em Connecticut, aos 96 anos.

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Não se dê o trabalho de me corrigir; sei que Vincent Van Gogh morreu na França, bem distante do Natal de 1870, nem quarentão ainda.

O Van Gogh a quem me refiro é o aquarelista norte-americano Robert Andrew Parker, prolífico e prestigiado ilustrador de revistas, livros infantis e capas de vinil (de jazzistas como Ellington, Brubeck e Monk). Foi ele quem “dublou”, no filme Sede de Viver (Lust For Life), o desorelhado gênio holandês – ou melhor, seu intérprete, Kirk Douglas, que apenas fingia pincelar aqueles trigais e girassóis diante da câmera, na verdade previamente copiados por Parker.

Autorretrato Van Gogh Foto: The Metropolitan Museum of Art

O outro Vincent do filme, o cineasta Vincente Minnelli, planejara mostrar as mãos de Douglas e Parker alternando-se numa pantomímica execução do quadro Campo de Trigo com Corvos, mas o truque não funcionou. Pelas obras que forjou para o filme, Parker ganhou da MGM o suficiente para estocar tinta para o resto da vida.

Para reconstituir a conturbada relação de Van Gogh com o irmão, Robert Altman, sem o arrimo de um grande estúdio por trás, precisou recorrer à colaboração de estudantes de arte; só assim barateou a produção de Vincent & Theo.

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Por falar em estudante de arte, foi alguém dessa espécie que Kurosawa, num episódio de Sonhos inspirado em Van Gogh e estrelado por Martin Scorsese (de barba ruiva e já desorelhado), escolheu para adentrar e passear, oniricamente, por algumas das pinturas mais deslumbrantes de Van Gogh, da maneira como Gene Kelly interagia com a fina flor do impressionismo, no balé final de Sinfonia de Paris.

Kurosawa foi quem, no cinema, melhor soube tirar partido da plasticidade pós-impressionista de Van Gogh. Embora desenhasse bem pra burro, não se meteu a contrafazer nenhuma das paisagens de Auvers-Sur-Oise que o alucinado Vincent pintou no fim da vida, preferindo recorrer a outras mãos e outros recursos ainda analógicos. Sonhos antecipou aquela exposição imersiva, Van Gogh Live 8k, que até hoje percorre o mundo.

Obviamente que diretores com intimidade ou experiência em artes plásticas costumam se sair melhor quando transplantam para a tela o universo visual de um pintor. Julian Schnabel, dublê de cineasta e pintor neoexpressionista, grafitou sozinho as criações que utilizou em sua cinebiografia de Basquiat.

Não chegou a ser, para Schnabel, um trabalho tão estafante quanto foi o de Ed Harris, diretor, produtor e intérprete de Pollock. Tanto ele se deixou absorver pelo projeto que precisou ser hospitalizado por conta de um estresse durante as filmagens. Chapiscar uma tela, como fazia Pollock, não é a moleza que aparenta. Mas pior seria se Harris estivesse filmando a vida e a arte pontilhista de Georges Seurat.

Opinião por Sérgio Augusto

É jornalista, escritor e autor de 'Esse Mundo é um Pandeiro', entre outros

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