Peça ‘O Espectador’ traz julgamento em forma de provocação para tempos incertos

Andrea Beltrão e Marieta Severo levam ao Poeira, no Rio, releitura de peça do romeno Visniec sobre desafios da profissão

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Por Ubiratan Brasil
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Ao entrar no teatro, o público se depara com diversas frases escritas com giz em uma parede. Inicialmente enigmáticas, as orações logo terão significado à medida que a trama se desenrola, mas há uma frase que se destaca, até por estar escrita com letras maiores: “Há um criminoso entre nós”. Trata-se de uma pista do espetáculo O Espectador, em cartaz no Teatro Poeira, no Rio.

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“Queríamos voltar da pandemia com um texto provocativo, que refletisse sobre o que está acontecendo”, conta Andrea Beltrão, sócia de Marieta Severo na administração do Poeira, que comemorou 17 anos. As atrizes, que conversaram com o Estadão, marcam sua volta à cena com um texto inspirado em O Espectador Condenado à Morte, do romeno Matéi Visniec. “Sim, inspirado porque começamos seguindo o trilho do autor, mas logo tomamos o nosso, com acréscimos. Daí a peça se chamar apenas O Espectador”, completa Marieta.

De fato, a dramaturgia de Visniec é fruto do encontro do teatro do absurdo de Ionesco com a sintaxe dos surrealistas e, como toque final, um singelo sinal de anarquia. Na sua peça, os representantes da Justiça (juiz, procurador, defensor, escrivão) se unem para condenar sumariamente um espectador, justamente aquele que se sentar, em cada sessão, na cadeira destinada ao acusado. Com um humor ferino, o autor romeno retrata uma absurda sessão de julgamento, em que todos os envolvidos criam provas, manipulam fatos e contam com testemunhas pouco confiáveis para se chegar a uma condenação.

Matéi é mais agressivo ideologicamente e mais experimental em termos de linguagem, uma oportunidade aberta para a montagem carioca, que conta com a direção dividida entre Enrique Diaz e Márcio Abreu. Assim, além das frases dispersas ao longo das paredes, há ainda uma tela em que são projetadas imagens captadas em tempo real pelas atrizes, especialmente dos momentos em que deixam a sala de espetáculo e se aventuram pela rua.

Cena da peça 'O Espectador', peça com direção de Enrique Diaz e Marcio Abreu, com Ana Baird, Renata Sorrah, Marieta Severo e Andrea Beltrão.  Foto: Nana Moraes

“O experimentalismo proposto pelo autor foi adotado e modificado por todos nós a partir das inúmeras conversas que tivemos ao longo dos ensaios, com todos colaborando para a construção do texto”, observa Diaz. “E, para isso, foi decisiva a inclusão das lembranças e das experiências pessoais de cada um”, completa Renata Sorrah, que também está no elenco ao lado de Ana Baird.

Sufoco

De fato, o público logo é convidado para uma sucessão de cenas em que as atrizes refletem, muitas vezes com bom humor, sobre as dificuldades enfrentadas pela profissão nos últimos anos, especialmente ao enfrentar a pandemia e a sistemática antipolítica cultural promovida pelo governo federal. “Celebramos uma arte que vive sufocada”, comenta Ana. “Não podíamos voltar ao palco, depois de dois anos de ausência, da mesma forma que antes. Tínhamos algo relevante para dizer”, completa Abreu.

E, aos poucos, as atrizes vão puxando o texto de Visniec, especialmente quando revelam o absurdo de um julgamento completamente tresloucado - é preciso dizer que um espectador é eleito como o réu que todas querem punir, mas sem agressividade. Afinal, a volta da encenação ao vivo pede um jogo teatral entre palco e plateia.

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“A dramaturgia de Visniec tem um humor inteligente e, de alguma forma, pede a presença de uma plateia ativa, que não está ali apenas para assistir”, comenta Andrea. “O mais importante é estarmos juntos nesse libelo contra o autoritarismo.”

E o caminho é humor anárquico que ironiza as atitudes de juiz e advogados de defesa e acusação, que alinham motivos absurdos para conseguir a condenação do réu a todo custo. E, para tornar o texto ainda mais precioso, os adaptadores (que são os próprios Enrique Diaz e Márcio Abreu) acrescentaram, além das experiências pessoais do grupo, frases e citações de autores como a poeta polonesa Wislawa Szymborska e do escritor franco-argelino Albert Camus.

Mais que o tom político, o que sobressai é uma ode ao fazer teatral em um momento decisivo para que se entenda corretamente o que são arte e cultura. “Sofremos muita demonização em nossa profissão, portanto, falar sobre isso em cena é revelador, além de provocar muito alívio”, constata Marieta. “É no palco que combatemos preconceitos e desconstruímos enganos. Ali é o local ideal para se estimular transformações baseadas no humanismo”, diz Renata.

Com o patrocínio da empresária Luiza Trajano, a peça foi viabilizada e, devido ao sucesso, teve sua temporada prorrogada duas vezes – fica em cartaz até 27 de novembro no casarão localizado no bairro do Botafogo. A expectativa é estrear em São Paulo no início de 2023.

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