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Saneamento: ‘Não é iniciativa privada sozinha que vai conseguir fazer investimentos’, diz ministro

Jader Filho, que comana a pasta de Cidades, afirma que revisão do marco do saneamento dá segurança jurídica a empresas privadas e estatais

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Por Mariana Carneiro
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Foto: Divulgação
Entrevista comJader Filhoministro das Cidades

BRASÍLIA - O ministro das Cidades, Jader Filho, afirma que a universalização do saneamento básico no País não será atingida apenas pelo setor privado -- e defendeu a atuação de estatais. “Esse processo não é só de um braço, ele precisa ter muitos braços. Não é só a iniciativa privada sozinha que vai conseguir fazer os investimentos necessários para alcançar a universalização”, afirmou.

Nesta quinta-feira, 13, o governo publicou novos decretos sobre o tema, após fechar um acordo com senadores em que se comprometeu em revogar partes sensíveis de outros textos, editados em abril, ameaçados de derrubada pelo Congresso. “O governo não faz distinção se o investimento vai ser público ou privado, o que o governo deseja e quer é que, em 2033, a gente consiga ter 99% dos domicílios com água e 90% com esgoto”, disse.

Desde que a legislação foi aprovada, em 2020, quase R$ 70 bilhões em investimentos privados saíram do papel e há previsão de mais R$ 20 bilhões, segundo números apresentados pela oposição no Senado, liderada pelo ex-ministro Rogério Marinho (PL-RN).

Nesta entrevista ao Estadão, Jader Filho afirma que o governo Lula “é extremamente favorável ao marco do saneamento”. “Ele veio para melhorar o sistema como um todo”, disse. O ministro diz, contudo, que é preciso desmistificar a atuação do setor público.

“Tem gente boa fazendo coisa boa no setor privado, tem gente boa fazendo coisa boa no setor público. Por que eu vou limitar uma empresa pública que queira fazer de fato investimento?”, questiona. “Assim, você joga todo mundo na vala comum, como se todo mundo tivesse que ser olhado pelo lado negativo.” A seguir, os principais trechos da entrevista.

Jader Filho afirma que o governo Lula é 'extremamente favorável ao marco do saneamento'. Foto: Ricardo Stuckert/Partido dos Trabalhadores

Por que o governo editou decretos que alteraram o marco do saneamento e teve de voltar atrás?

No início do governo, quando nós iniciamos, tínhamos um prazo que era limite, em 31 de março de 2023, onde 1.113 municípios por conta dos prazos que haviam sido estabelecidos no Marco Legal do Saneamento, esses prazos estavam expirados. Ou seja: aqueles municípios que não tivessem cumprido com o previsto sobre a comprovação econômico-financeira (das empresas estatais prestadoras de serviços), que não tivessem com os contratos vigentes e que não tivessem feito a regionalização, eles estariam impedidos de receber recursos públicos federais, seja através de emendas, seja através de financiamento dos bancos públicos federais. Então, a primeira coisa que nós buscamos foi estabelecer novos prazos. Para quê? Para uma nova comprovação econômico-financeira, o que, no nosso entender, não havia sido feito. Quando o Congresso aprovou o marco do saneamento, o ex-presidente vetou o prazo de dois anos de transição e, no nosso entender, tudo isso que está acontecendo agora se dá porque não houve esse prazo.

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Por quê?

Com um prazo de transição, você dá tempo de adaptação às regras do jogo. Então, o principal objetivo era que a gente pudesse dar prazo para que esses municípios não fossem impactados num tema tão importante.

O governo não está dando prazo para empresas que comprovadamente já demonstraram não ter capacidade de investir?

Isso é relativo. Se você não tem segurança jurídica, no caso dos Estados e dos municípios, vai fazer os investimentos? Você estabeleceu as metas para a universalização de água e esgoto -- e não tem prazo mais para você mudar isso -- se você não tem segurança jurídica para fazer aquele investimento, você vai buscar financiamento? Quem vai te dar financiamento? O seu contrato é precário, está dizendo que não vale mais; você vai botar investimento naquilo? Nós tínhamos o entendimento de que havia alguns atores que estavam no limbo e você precisava deixar que eles se regularizassem, o que não foi permitido pela lei quando não houve transição.

Mas o Congresso não aceitou.

A gente precisava entender o que a Câmara e o Senado entendiam que atacava a lei. Por isso, o governo refez os decretos e suprimiu alguns artigos, pois entendeu que não poderíamos ter feito algumas mudanças por decreto. Mas o importante é entender o conceito. O governo não faz distinção se o investimento vai ser público ou privado; o que o governo deseja e quer é que, em 2033, a gente consiga ter 99% dos domicílios com água e 90% com esgoto. Mas tem um papel claro do que é de atribuição de Estados e municípios e o que é do setor privado. Por exemplo, uma adutora de 80 quilômetros para levar água para uma cidade de 2 mil habitantes: isso é papel do setor privado? Fica de pé?

Por que não ficaria?

Porque quem vai fazer o investimento disso? O que a empresa vai faturar vai pagar a adutora? Em diversas dessas concessões que estão sendo feitas agora, em privatizações, a área rural não está dentro. Quem vai fazer o investimento no rural se não está dentro da concessão? O governo em nenhum momento se colocou contra as concessões ou contra as PPPs. Pelo contrário, as PPPs estavam limitadas a 25% e o governo tirou a limitação. E o que é PPP senão investimento privado? Só que nós entendemos que o Brasil é um País muito grande, que ele precisa de diversas opções de investimento. Modelo que encaixa no Norte não encaixa no Sul; você tem empresas públicas como a Saneago, a Sanepar que prestam um bom serviço. Tem empresas municipais em Minas Gerais e em São Paulo que prestam um bom serviço. Por que limitar se aquela empresa está prestando um bom serviço, se ela está mostrando que vai alcançar a meta de universalização? Por que tirar a empresa pública disso?

O sr. entende que os decretos do Lula estavam protegendo as estatais?

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Não, os decretos dão segurança jurídica para os dois ambientes, seja para o setor público, seja para o setor privado. E abrindo novas oportunidades para que outros investimentos possam ocorrer. Só que nós entendemos, e por isso estes decretos foram revogados, respeitando a posição do Senado, que tinha algumas coisas que a gente compreendeu que precisavam ser revistas. Nós entendemos que havia ali coisas que poderiam estar invadindo a competência do Legislativo.

O setor privado foi ao STF questionar a brecha aberta para que estatais sigam prestando o serviço sem fazer licitação.

Como o processo de estabelecer novos prazos para comprovação econômico-financeira (das empresas estatais) não pode ser feito por decreto, retorna aquilo que estava no marco do saneamento. Mas houve um avanço importante. Os prazos daqueles 1.113 municípios que não poderiam mais receber recursos públicos federais, eles vão poder receber agora.

As estatais vão poder continuar prestando serviços sem licitação?

Aquelas que tiverem contrato vigente, sim. Aquelas que não tiverem contrato vigente, não poderão mais fazer, porque elas não vão poder mais fazer nem a comprovação econômico-financeira (prazo se encerra neste ano), nem assinar novos contratos, a não ser que seja feita a partir do processo de licitatório.

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Os decretos anteriores permitiam a regularização desses contratos até 2025. Isso caiu?

Caiu. Esses contratos não poderão mais fazer o processo de renovação. Para poder fazer a comprovação econômico-financeira de acordo com as suas metas, o município teve que apresentar um planejamento. Fazer isso hoje não é mais possível porque passaram os prazos estabelecidos no marco, justamente para não passar a mão na cabeça de quem não estava fazendo. Mas, ainda que o contrato esteja irregular, a empresa vai poder continuar prestando serviço até 2025. Ela não pode regularizar (o contrato), mas será o tempo para que o município, o bloco, o Estado se regularize. Então, vai continuar o prazo de 2025 para a prestação de serviços, para poder receber recursos. O nosso risco aqui era eles terem que cessar o serviço.

Obrigava o município a fazer uma licitação.

E enquanto isso? Por isso o prazo até 2025, porque esses processos são demorados. O marco trouxe segurança jurídica, previsibilidade, competição. O governo é extremamente favorável ao marco do saneamento, ele veio para melhorar o sistema como um todo. Agora, nossa preocupação é não criar um limbo. Ouvi do presidente da estatal do Ceará o seguinte: havia um município para a qual ele estava prestando serviços, mas o município não se adequou. Não fez regionalização, não apresentou metas, não cumpriu os prazos do marco do saneamento. O que eu faço: eu desligo a água e o esgoto dele? Vai fazer licitação, ok. Mas, enquanto não tiver licitação, faço o quê? Com a revogação dos decretos, eu não posso mais reabrir os prazos para ele criar metas. Mas o novo decreto impede que o serviço seja interrompido, e até 2025 o município vai ter que fazer uma licitação, uma concessão, uma PPP. Não vai mais poder ser a estatal fornecendo para ele.

Uma pesquisa do Instituto Trata Brasil mostra que o investimento em saneamento nesses municípios é ainda mais baixo do que a média nacional. Não é dar mais prazo para quem já está na lanterna?

Nós precisamos discutir de maneira objetiva como vamos tratar essa questão dos investimentos. Com o Congresso, prefeitos, como fazer esse mutirão. Precisamos tracionar os investimentos. Temos que chamar todo mundo para que façam os investimentos possíveis, para que nós alcancemos esse processo de universalização.

Mas por que esses municípios não fizeram o básico ainda?

Cada região tem uma especificidade, os problemas são diversos. Tem casos em que cumpriram a regionalização, mas não cumpriram a meta de fazer o plano econômico-financeiro; outros que não estão cumprindo com os prazos de universalização, outros que não estão prestando o serviço. Há muitos problemas. Tem Estados em que o setor público já alcançou a meta de universalização, outros em que o setor privado já alcançou. Por isso, precisamos fazer um extrato, identificar problema por problema e região por região para entender quais são esses objetivos. Agora, esse processo não é só de um braço, ele precisa ter muitos braços. Não é só a iniciativa privada sozinha que vai conseguir fazer os investimentos necessários para alcançar a universalização. Nem o setor público tem recursos para sozinho fazer os investimentos para a universalização. Eu fui procurado por quatro embaixadores de quatro países diferentes interessados nas concessões do saneamento.

Mas se as estatais podem continuar prestando serviço direto, isso não perpetua os contratos atuais e limitam a iniciativa privada?

Vou dar um exemplo prático: um dos governadores que me procuraram sobre esse assunto é o governador Ronaldo Caiado. Se você for pegar os números de Goiás, a Saneago presta um bom serviço. Em alguns casos, o que vai acontecer é que ela vai ser impactada. Aí eu vou te perguntar: se a Saneago está prestando um bom serviço, por que eu tenho que ter preconceito? Por que ela é pública? A gente precisa desmistificar isso. Tem gente boa fazendo coisa boa no setor privado, tem gente boa fazendo coisa boa no setor público. Por que eu vou limitar uma empresa pública que queira fazer de fato investimento? Assim, você joga todo mundo na vala comum, como se todo mundo tivesse que ser olhado pelo lado negativo.

O sr. acredita que as metas de universalização em 2033 são factíveis?

Eu acho que a gente precisa acelerar esse ritmo. Possível é, mas a gente precisa correr.

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