O barco da macroeconomia brasileira está começando a balançar. Os juros de dez anos (no caso, dos swaps DI-pré), que caíram a 6,9% no final de julho, hoje eram cotados a 8,2% quando esta coluna estava sendo redigida, uma alta de 1,3 ponto porcentual (pp) em cerca de 50 dias.
Na verdade, é a curva de juros inteira que "empinou". Nos prazos muito curtos, subiu menos (no curtíssimo, como um mês, até caiu). Nos longos, subiu mais.
Isso é consistente com a ideia de que o juro de prazo muito curto é dominado pelas ações de política monetária do BC, que mantém a Selic no nível baixíssimo (para padrões históricos) de 2%. Nos prazos mais longos, porém, a influência da taxa básica é bem menor.
Expectativas de inflação ou percepção aguçada do risco país podem fazer os juros mais longos subirem, mesmo que a taxa básica permaneça em níveis muito reduzidos.
Em coluna recente, abordei a visão de alguns analistas que veem na alta da curva de juros mais temor de inflação do que propriamente elevação do risco Brasil, que é muito determinado externamente.
Os CDS do Brasil, medida de risco, vêm se mantendo em níveis confortáveis, mas a depreciação do real no ano ainda permanece bem acima do ocorrido com várias economias emergentes que normalmente são comparadas ao Brasil.
O temor da inflação ainda não está claro nas projeções feitas pelos economistas, mas aparece quando se calcula a inflação implícita na comparação de juros prefixados e pós-fixados.
E isso se dá não apenas no curto prazo, quando a alta da inflação implícita poderia ser em boa parte explicada pelo efeito direto do impacto no IPCA da disparada dos alimentos, mas também em prazos mais longos - neste caso, é sinal de expectativa inflacionária mesmo, ou de percepção de aumento de risco.
Na verdade, entretanto, temor de inflação e aumento de risco são, de certa forma, vasos comunicantes. Para começar, os dois têm em comum uma mesma fonte (não necessariamente exclusiva): a colossal injeção fiscal de recursos na economia, especialmente pelo auxílio emergencial.
Em termos de risco, a ligação é imediata. Se o Brasil em 2021 não retomar a política de ajuste fiscal gradativo iniciada em 2015, a dívida bruta próxima a 100% do PIB pode muito bem detonar de vez a estabilidade macroeconômica. E o que vai acontecer na política fiscal em 2021, naturalmente, já está sendo decidido agora.
É claro que o apetite (ou aversão) internacional a risco interfere no timing em que o desarranjo fiscal brasileiro pode desaguar numa crise aguda.
Em termos de inflação, há fatores internacionais, como a pressão global em preços de matérias-primas e alimentos, há o câmbio desvalorizado (que também se realimenta do temor fiscal), há ainda as consequências de certa desorganização da oferta durante a quarentena, mas há também a demanda turbinada pelo auxílio emergencial em setores de consumo popular como alimentos e materiais de construção.
Outra questão é que a desancoragem de expectativas inflacionárias pode ser sintoma de agravamento da preocupação com a solvência pública. E inflação mais alta implica juros reais mais altos que significam piora da dinâmica da dívida pública. Juros reais mais altos também significam atividade mais fraca, piorando a expectativa de crescimento do PIB, o denominador dos indicadores de solvência.
Dessa forma, tudo pode se interligar e se potencializar, tanto para o bem como para o mal.
Nas últimas semanas, a coisa tem escorregado para o lado errado.
Ainda não é, nem de longe, motivo para pânico. A inflação cheia continua muito baixa, com a contribuição dos serviços deprimidos, e as expectativas (tirante a inflação implícita) e projeções do BC da inflação permanecem em níveis confortáveis.
Porém, como apontado no início desta coluna, o barco está balançando.
Seria bom que o Executivo e o Legislativo se dessem conta de que, se rapidamente não se acertarem para garantir uma política fiscal sensata a partir de 2021, todo o esforço dos últimos anos para criar um novo equilíbrio macroeconômico de juros baixos e câmbio mais competitivo poderá ser jogado fora.
Fernando Dantas é colunista do Broadcast (fernando.dantas@estadao.com)
Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 21/9/2020, segunda-feira.