Após três anos de tentativas de aprovação no Congresso, o projeto de lei que regulamenta o mercado de carbono no Brasil finalmente teve sua tramitação encerrada e, agora, aguarda a sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O texto, que foi aprovado pela Câmara dos Deputados na semana passada, estabelece que empresas serão limitadas a emitir um certo volume de gases de efeito estufa. Se ultrapassarem o teto, terão de compensar comprando crédito de carbono.
Para especialistas, apesar do atraso, a aprovação do PL tem de ser comemorada. “É motivo de grande celebração depois de tanta tramitação. Na COP-29 (no Azerbaijão, na semana passada), a aprovação foi muito celebrada. Havia cansaço e ceticismo em relação ao tema. O Brasil já tinha dito que levaria a aprovação para a COP- 28 e isso não aconteceu, o que gerou frustração”, disse a diretora de clima, energia e finanças sustentáveis do CEBDS (Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável), Viviane Romeiro.
O PL também avançou sobre o mercado voluntário de carbono – no qual créditos são vendidos para empresas cumprirem compromissos climáticos que não estão sujeitos a obrigações legais de redução de emissões –, estabelecendo uma interoperabilidade entre ele e o regulado. Assim, créditos desenvolvidos em projetos do tipo REDD+ (mecanismo em que proprietários de áreas que estão sob pressão de desmatamento podem vender créditos de carbono quando conseguem preservar a floresta) poderão ser adquiridos por empresas que precisam compensar suas emissões legalmente. Ainda falta definir, no entanto, qual o porcentual desse tipo de crédito será aceito no mercado regulado.
Outros pontos, como a metodologia que será usada para contabilizar os créditos, também precisão ser definidos adiante. “O PL fala de três a cinco anos de implementação, mas sabemos que pode levar mais. Esse prazo dependerá de mudanças de governo. Não sabemos quando o mercado estará funcionando. Tem muitos desafios pela frente. Isso é só o começo”, disse a presidente da Aliança Brasil NBS (entidade que reúne empresas desenvolvedoras de projetos de carbono), Janaina Dallan.
Confira, a seguir, a avaliação de especialistas sobre a aprovação do PL.
Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa
A aprovação do PL do mercado de carbono é um marco histórico para a política climática brasileira. A lei cria um sistema que precifica as emissões de gases de efeito estufa, incentivando empresas a reduzir a poluição e a adotar tecnologias mais limpas. Com isso, o Brasil finalmente se junta aos países que já usam mercados regulados para cumprir metas climáticas, fortalecendo seu compromisso com o Acordo de Paris.
O texto aprovado, porém, inclui pontos que fogem do foco principal de criar um mercado regulado. Regras sobre mercados internacionais de carbono e a obrigatoriedade para o setor de seguros adquirirem ativos ambientais são exemplos que podem gerar insegurança jurídica. Além disso, embora a inclusão de mecanismos como REDD+ (mecanismo em que proprietários de áreas que estão sob pressão de desmatamento podem vender créditos de carbono quando conseguem preservar a floresta) traga benefícios, ela também aumenta a complexidade, exigindo cuidado para garantir direitos das comunidades e evitar brechas que comprometam o impacto do sistema. O REDD+ não prevê regulação de emissões, é um mecanismo diferente e merecia um projeto de lei à parte.
O maior desafio agora é regulamentar o mercado com rapidez e clareza, garantindo transparência e confiança no sistema. É fundamental evitar fraudes, assegurar benefícios reais na redução de emissões e incluir povos indígenas e comunidades tradicionais de forma justa. Além disso, será necessário alinhar o mercado de carbono com as demais políticas climáticas, garantindo que ele contribua efetivamente para a transição rumo a uma economia de zero emissões.
Janaina Dallan, presidente da Aliança Brasil NBS (entidade que reúne empresas desenvolvedoras de projetos de carbono)
A aprovação do PL permite que o País avance para cumprir as metas do Acordo de Paris (que estabelece metas de redução de gases de efeito estufa). A partir do momento em que temos a regulamentação para distribuir as metas por setores da economia, a gente começa a trabalhar para cumprir com o acordo.
Outro papel importante é que ele estabeleceu uma ponte entre o mercado regulado e o voluntário. Assim, um dos grandes ganhos de ter o projeto de lei aprovado é incentivar o desenvolvimento social e econômico do País, porque isso pode levar recursos para o mercado voluntário. Uma porcentagem do que as empresas podem comprar no mercado voluntário poderá ser usada para compensar suas emissões. Começa a haver propulsão a esse mercado que já existe no Brasil e que pode trazer benefícios socioeconômicos, incluindo para comunidades tradicionais.
Mas a gente ainda tem desafios. O PL vai passar pela fase de regulamentação, em que as estruturas desse sistema serão desenhadas. Vai ter de ser criado um órgão regulador. Metodologias de contagem de créditos terão de ser validadas. Fazer tudo isso é um grande desafio. Será preciso fazer uma discussão com nível técnico muito alto nos próximos anos.
O PL fala de três a cinco anos de implementação, mas sabemos que pode levar mais. Entendo que, em menos de três anos, é impossível. De quatro a cinco, seria algo razoável. Mas tem riscos. Esse prazo dependerá de mudanças de governo. Não sabemos quando o mercado estará funcionando. Tem muitos desafios pela frente. Isso é só o começo.
Viviane Romeiro, diretora de clima, energia e finanças sustentáveis do CEBDS (Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável)
A aprovação do projeto que regulamenta o mercado de carbono ocorre após um longo processo de idas e vindas no Congresso. Isso mostra a complexidade e importância da agenda e como ela ganhou um caráter político. O PL representa um grande passo para o País não só em termos de política climática, mas também de desenvolvimento. Na COP-29 (no Azerbaijão, na semana passada), a aprovação foi muito celebrada. Havia cansaço e ceticismo em relação ao tema. O Brasil já havia dito que levaria a aprovação para a COP- 28 e isso não aconteceu, o que gerou frustração. Por outro lado, tivemos discussões fundamentais neste ano. É um passo muito importante que o Brasil já deveria ter dado, mas agora vamos correr atrás porque a urgência climática é evidente.
A partir de agora, teremos uma melhor prática internacional no clima e o Brasil se consolida na agenda da transição para a descarbonização. O mercado é um elemento fundamental para cumprimento da política do clima, estabelecida desde 2009, e para o cumprimento da NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada, o compromisso assumido internacionalmente pelo Brasil para reduzir suas emissões).
O texto traz definições importantes e uma base técnica robusta sobre o mercado regulado , o SBCE (Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa), além de dar segurança jurídica para os atores. Há uma maior clareza na redação, especialmente em relação à interoperabilidade do mercado regulado com o voluntário.
Em junho, o CEBDS havia publicado uma carta, com a assinatura de mais de 50 empresas associadas, pedindo a simplificação do PL. Havia o entendimento de que o texto estava longo, com elementos adicionais que não precisavam constar em um projeto de lei. O entendimento era de que o projeto deveria ser mais enxuto e o detalhamento, feito na fase de regulamentação. Trabalhamos para que houvesse a simplificação de elementos, principalmente sobre o mercado voluntário. Eles suscitavam divergência e insegurança jurídica. Alguns elementos foram resolvidos nas últimas semanas.
Ainda ficaram alguns com certa suscetibilidade, principalmente em relação ao REDD+ (mecanismo do mercado voluntário em que proprietários de áreas que estão sob pressão de desmatamento podem vender créditos de carbono quando conseguem preservar a floresta). Há uma preocupação relacionada à diferenciação de projetos jurisdicionais e privados. Por exemplo: um projeto de carbono em área de concessão gera créditos privados ou da jurisdição?
Mas, de forma geral, o texto melhorou em relação ao que se tinha em junho. O item que obrigava a redução de emissão veicular, por exemplo, foi retirado. Para a gente, não fazia sentido mantê-lo. Não tem como mensurar o que emite cada carro. No PL, estamos falando de operadores, de instalações que concentram as emissões. No transporte, por enquanto, estamos olhando as empresas que produzem o combustível, em vez de cada carro.
Após a sanção presidencial, teremos vários desafios na regulamentação. Teremos que fazer diversas definições técnicas, desenvolver banco de dados… Será urgente definir e operacionalizar o órgão gestor. Ele será responsável pelas atividades do mercado regulamentado, por monitorar o sistema. Depois que isso estiver estabelecido, entramos na definição dos entes regulados, que terão a obrigatoriedade de reduzir as emissões. Eles já foram divididos em instalações que emitem de 10 mil a 25 mil toneladas de gases de efeito estufa por ano e que emitem mais de 25 mil toneladas. O órgão gestor vai definir quem está dentro e fora disso, quais metodologias serão aceitas e qual será o plano de monitoramento das emissões. Esse processo será desafiador e vai precisar de base intensiva de especialistas no tema. Será fundamental a participação ampla da sociedade no processo.
Com base na experiência global, os primeiros setores a entrarem no sistema são a indústria e parte do setor energético. Se considerar o perfil da indústria do Brasil, a gente estima que 15% das emissões totais do País serão englobadas. Parece pouco, mas não é, porque a maior parte das emissões brasileiras vem do desmatamento, principalmente o ilegal. Isso, a gente não soluciona com mercado de carbono. A gente soluciona com controle.
Sobre o fato de o agro ter ficado de fora, o CEBDS entende que o mercado de carbono é estratégico, mas não é o único instrumento de regulação. A forma como o mercado regulado consta traz que atividades que tem metodologia consolidada de mensuração, a indústria, por exemplo, está mais preparada para participar. O CEBDS defende a implementação gradual do sistema. Isso quer dizer que, mesmo se não tivesse a exclusão explícita do agro, ele não faria parte do regulado inicialmente, porque as metodologias ainda estão sendo desenvolvidas. Mas é importante dizer que a nossa NDC abrange todos os setores. Todos os setores terão de regular suas emissões para atingir a meta climática, não necessariamente via mercado de carbono.
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Renata Amaral, líder da comissão de meio ambiente da ICC Brasil (Câmara de Comércio Internacional no Brasil)
A aprovação do PL coloca o Brasil de novo no mapa de discussões sobre investimentos. O projeto prevê a interoperabilidade do mercado regulado com o voluntário. Portanto, estabelece estímulo para investimento no mercado voluntário, já que parte dos créditos comercializados nesse ambiente vão ser usados para cumprimento de metas de redução de emissões. Espera-se que, agora, esses créditos do mercado voluntário atinjam um valor maior de mercado, porque haverá um entendimento de que os créditos fazem parte do SBCE (Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa).
A aprovação também coloca o País em uma posição de seriedade com relação à implementação de sua política de mudanças climáticas. Não é uma lei perfeita, mas o Brasil precisava de uma legislação que previsse o seu mercado interno regulado como uma das formas de atingir metas de NDC e que trouxesse maior segurança para os investidores do mercado voluntário.
Entre os entraves que permanecem, o primeiro é que o PL fala que quem emite mais de 25 mil toneladas de gases de efeito estufa por ano terá de compensar. A disposição que trata desse limite fala em fontes e instalações, mas não define se essas fontes serão individuais ou coletivas. Serão consideradas cada instalação de um grupo econômico ou todas elas juntas? Se considerarem por instalações, o número de empresas que serão reguladas será menor. O governo manifestou que seria por CNPJ, mas isso não está definido e traz insegurança sobre o cerne da lei, que é quem será regulado. Houve muita discussão em relação a questões do mercado voluntário e vários pontos do regulado, que deveria ser o foco da lei, ficaram soltos.
Outro ponto importante que ficou para a regulamentação é o das metodologias que serão aceitas para contar o crédito no mercado regulado. A gente tinha se manifestado que seria importante haver uma sinalização de que metodologias aceitas internacionalmente seriam válidas no mercado brasileiro. Mas isso não ficou definido. Então, há uma brecha para insegurança. Projetos em curso podem não ser aceitos no mercado regulado.
Nossa estimativa é a de que pode levar oito anos para o mercado estar em operação. Mas a gente espera que, nesse período, alguns passos sejam dados. É importante que haja uma sinalização do governo em relação às metodologias e à definição do porcentual de crédito do mercado voluntário que será aceito no regulado. Se fala que as empresas que precisam compensar suas emissões poderiam fazer isso comprando de 10% a 20% no mercado voluntário, mas isso está indefinido ainda.
Esse momento de implementação e aprimoramento dos sistemas de controle das mensurações é importante para a capacitação interna das empresas. Elas precisam se preparar para o mercado e ver que investimentos devem fazer.
André Escada, consultor de políticas de carbono da Biomas
Desde 2021, havia uma tentativa intensa de aprovação do PL. Agora, finalmente isso aconteceu. É um marco importante para a política climática nacional. É um instrumento de redução de emissões que vai ajudar o País a atingir as metas do Acordo de Paris.
A legislação foi desenhada como se fosse um guarda-chuva: apesar de o objeto central ser o mercado regulado – e aí o Brasil se junta a mais 53 países que já têm mercado regulado –, ela traz elementos importantes do voluntário e do artigo 6 do Acordo de Paris, que organiza o mercado internacional. Traz também regras de comercialização de crédito para o mercado voluntário que são fundamentais para investidores, do ponto de vista de segurança jurídica.
Agora, as regras estão dadas. Para empresas como a Biomas, que precisa de investimento de fora do País (para desenvolver projeto que restauram áreas desmatadas), isso traz segurança. Por exemplo, a definição da natureza jurídica do crédito de carbono e as regras de titularidade desse crédito foram definidas. Também trouxe o caminho necessário para que o desenvolvedor possa solicitar autorização para exportação de um crédito e para que esse crédito conte na NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada, o compromisso assumido internacionalmente pelos países para reduzirem suas emissões) do comprador.
O texto ficou semelhante ao que estava em discussão em julho, mas foi polido ao longo do caminho. Apesar de não ser o caminho ideal, de ter deixado o mercado voluntário burocrático, ele está definido.
De acordo com o PL, a implementação do mercado regulado vai levar de quatro a cinco anos. Esse período foi subdividido. A primeira fase, a de regulamentação, terá 12 meses para ser concluída, prorrogáveis por mais 12 meses. A operacionalização deve levar mais um ano. Depois, tem uma fase de aprendizado, em que os entes regulados terão de relatar suas emissões e serão monitorados. Na quarta fase, as cotas de emissão ainda não serão onerosas. Na quinta, o mercado começa a funcionar de verdade. A interoperabilidade do mercado voluntário com o regulado dependerá também desse cronograma. Mas regras como tributação e natureza jurídica, não.
Ainda que haja todo esse prazo para o mercado começar a operar, a aprovação do PL tem de ser comemorada. Ela traz uma segurança jurídica necessária, especialmente para projetos de restauração de áreas desmatadas, que são intensivos em capital.
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