O governo de Jair Bolsonaro vem usando diversas estratégias, como a impressão de provas e a análise de pessoas externas ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), para tentar controlar o conteúdo do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Servidores que pediram exoneração do órgão falam em pressão para trocar itens e o Estadão apurou que já houve supressão de “questões sensíveis” na prova que será aplicada nos dias 21 e 28.
Na segunda-feira, em meio à crise dos 37 pedidos de exoneração de servidores do Inep, que criticaram essa pressão e a “fragilidade técnica” da cúpula da autarquia responsável pelas provas, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que o Enem começa agora a “ter a cara” do governo. Acrescentou que “ninguém precisa estar preocupado com aquelas questões absurdas do passado”. O vice-presidente Hamilton Mourão negou na terça-feira interferência, com a alegação de que esse era o jeito de o presidente falar. O ministro da Educação, Milton Ribeiro, primeiramente, afirmou que teria acesso prévio às perguntas. Depois, recuou. Na terça-feira, disse que “não houve interferência”.
Na realidade, o Inep passou a imprimir a prova previamente, em um procedimento não adotado em anos anteriores, para permitir que mais pessoas tenham acesso ao exame antes da aplicação. Quem examinou uma primeira versão foi o diretor de Avaliação da Educação Básica do Inep, Anderson Oliveira – que está no cargo desde maio. Segundo relatos à reportagem, 24 questões foram retiradas após uma “leitura crítica”. Algumas foram consideradas “sensíveis”.
As comissões de montagem da prova sugeriram outras perguntas para substituí-las, mas o Enem acabou descalibrado – o exame tem uma quantidade de questões consideradas fáceis, médias e difíceis. Assim, 13 das questões suprimidas foram reinseridas. Oliveira não quis dar entrevista. Em 2020, segundo apurou o Estadão, um dos que entrou na sala segura para ver as questões foi o general da reserva Carlos Roberto Pinto de Souza, ex-comandante do Centro de Comunicação do Exército. Ele morreu de covid e foi substituído pelo tenente-coronel-aviador Alexandre Gomes da Silva.
As questões são feitas por professores contratados. Segundo servidores, porém, o atual presidente do órgão, Danilo Dupas, deixou claro que a prova não poderia ter perguntas consideradas inadequadas pelo governo. Essa pressão era entendida por servidores como um assédio moral e fez parte das denúncias. Eles afirmaram ainda que o clima de pressão atual já levou a uma autocensura dos grupos que escolhem as questões.
Histórico vem desde 2018
A intenção do governo de mexer no Enem paira no Inep desde a eleição de Bolsonaro, em 2018, quando ele criticou uma questão que mencionava um dialeto de gays e travestis. A então presidente do Inep era Maria Inês Fini, que criou o exame no governo Fernando Henrique e voltara ao órgão na gestão Temer. Ela conta que sempre leu o Enem antes porque esse era o seu papel, mas no computador e em “um trabalho técnico e não fiscalizador”. “Essa coisa de considerar questões sensíveis nunca existiu”, diz. “Hoje, quem está lendo não entende nada de avaliação.” A reportagem consultou outros ex-presidentes e todos afirmaram nunca analisar a prova previamente. Procurado sobre o assunto na terça-feira, o Inep não se manifestou.
Comissão para avaliar Banco Nacional de Itens do Enem
No primeiro ano do governo Bolsonaro, uma comissão foi criada para avaliar a pertinência do Banco Nacional de Itens do Enem com a “realidade social” do Brasil. O ministro da Educação à época, Abraham Weintraub, afirmou que as questões não viriam carregadas “com tintas ideológicas”. Essa comissão chegou a desaconselhar, em 2019, o uso de 66 questões por promover “polêmica desnecessária” e “leitura direcionada da história” ou ferir “sentimento religioso”.
Neste ano, houve nova tentativa de criar comissão para avaliar as questões. O Inep preparava uma portaria para formar um grupo permanente que deveria barrar “questões subjetivas”. A ideia era que se abstivesse de “itens com vieses político-partidários e ideológicos”. O caso foi levado ao Ministério Público Federal, que recomendou, em setembro, que o Inep desistisse dessa comissão. Em resposta, o órgão afirmou que a recomendação foi atendida.