Profissões do Futuro: historiadores corporativos

Eles investigam a história das empresas e fazem importantes diagnósticos culturais, sociais, políticos e econômicos de suas trajetórias

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Por Redação
Atualização:

Muitas efemérides separam os dias de hoje do tempo em que ser historiador significava virar professor ou pesquisador acadêmico, quase sempre. Quem gosta de história e não quer mergulhar na academia nem dar aulas pode pensar em trabalhar com memória institucional, uma área que lida com a trajetória e a identidade das empresas e ao mesmo tempo reúne os elementos técnicos e estratégicos das pesquisas históricas mais profundas. É onde vivem os historiadores corporativos.

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A fim de coletar e trabalhar o arsenal de informações históricas de uma organização, a memória corporativa começou a ganhar corpo no Brasil principalmente nos anos 90. No princípio, a produção seguia um jeitão comemorativo e, digamos, oficial, pautado por exposições e livros de aniversário. A ideia era mostrar o que havia de mais bonito. Com o tempo, o mercado foi ficando desafiador e surgiu a necessidade de criar outras estratégias para lidar com o conteúdo – e de estruturá-lo em um contexto mais amplo.

A memória da empresa pode receber um tratamento ‘arquivístico’; pode ser erguida em depoimentos, dando voz às pessoas; pode ser embasada na museologia, que trata o acervo de dentro para fora, entendendo que o impacto social das informações extrapola o valor “interno”. Qual é o caminho mais adequado? Depende. É possível combinar mais de um? Sim. Em geral, o que ocorre é que equipes de consultoria em memória institucional fazem um diagnóstico em que mapeiam o conteúdo e orientam a empresa em relação ao seu uso, propondo o desenvolvimento de produtos. Um livro, um evento, uma biblioteca, uma mostra cultural aberta ao público, uma campanha interna (ou várias). Os projetos são executados de acordo com a realidade (interesse, engajamento, orçamento, estratégia, prazo e etecetera).

Empresas e instituições que contratam projetos de memória já não conseguem se esquivar de, em primeiro lugar, lidar com as lembranças afetivas e seus acertos bem como com os erros e os pontos mais obscuros da trajetória. Em segundo, entender que esses não são isolados e por isso pesa a responsabilidade e o compromisso de permitir que sejam narrados.

Quando documenta patrimônio cultural, intelectual e de experiência, o historiador se converte em uma espécie de investigador analítico. E em um criativo contador de histórias. Sua função é não só organizar e cuidar de tudo o que compõe aquele “organismo” em acervos, exposições, depoimentos ou outros produtos, mas também o de dar um sentido a esse conteúdo. Ele ajuda empresas, organizações e instituições de naturezas variadas a se aprofundar na própria trajetória e por meio dela refletir e estabelecer conexões com o negócio e a sociedade.

Combinação de talentos – Ao mergulhar em um projeto de memória de um lugar, seu entorno e as pessoas envolvidas, ao propor os formatos mais criativos e instigantes para usar essas descobertas, é enorme a chance de encontrar muito mais do que clichês corporativos aprisionados em linhas do tempo e livros datados.

Não são apenas os historiadores que trabalham esses temas. Os guardiões da memória das organizações surgem de escolas variadas e compõem times multifacetados. São pesquisadores e escutadores talentosos. Entre tantos, há desde os que dominam os métodos de coleta de depoimentos por meio de história oral aos que preferem se concentrar no minucioso trabalho de arquivo. Juntos e à parte, jornalistas, arquitetos, arquivistas, relações públicas, antropólogos, sociólogos, museólogos, bibliotecários e especialistas na conservação de objetos e documentos dedicam-se a construir narrativas.

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Os formatos são variados. É possível organizar acervos e montar exposições de coleções, produzir catálogos, livros, filmes, cursos, espetáculos, intervenções artísticas, flashmobs e instalar, na empresa, um centro de memória. Para que esse centro se mantenha vivo e mantenha seu valor de ferramenta de conhecimento, como fonte de informação, ele depois de implementado precisa ser administrado por gestores contratados ou por uma equipe da própria consultoria. A história continua a ser contada todos os dias. Bem administrado, esse núcleo existe no “para sempre” e tem muito valor.

Formada em relações públicas e especialista em museologia, Maria Ignez Mantovani é fundadora e diretora da Expomus, consultoria paulistana especializada em projetos museológicos, exposições e coleções. Com escritórios em São Paulo e no Rio, surgiu em 1981 e também atua em memória institucional. “Quando eu estava na faculdade de RP, que lida com essa questão da reputação e da imagem, alguns professores já tinham a centelha de pensar a história na imagem da empresa. Torná-la pública e extrair valores passava a ser um dado significativo, uma estratégia de relações públicas”.

Para quem quer ser historiador corporativo, Maria Ignez recomenda buscar um olhar de comunicação. “A primeira ferramenta é você pensar na imagem e em como pode tirar proveito disso e acionar história, valores, comunicação e, principalmente, a compreensão da trajetória dessa empresa e para onde ela está indo. A museologia também é um instrumento fantástico que lida com passado, presente e futuro na sua essência. Ela tem um papel de abertura social fabuloso. No meu caso, a comunicação e a museologia me dão elementos para pensar em soluções de memória. Mas não sou só eu que consigo fazer isso. Eu acho que tem de existir a junção de uma plataforma de comunicação robusta e ao mesmo tempo a noção maior da questão patrimonial, das relações, e essa visão museológica da perpetuação. Você tem de atender a demanda de uma empresa, mas para isso tem de ter um olhar muito mais amplo”.

Ao comentar a característica multidisciplinar(*) dos projetos de memória, Maria Ignez sublinha temas como colaboração e planos museológicos aplicáveis ao universo corporativo de várias maneiras, desde os mais complexos estudos de impacto em cidades que são modificadas por grandes obras de infraestrutura ao tratamento de acervos de produtos que contam a história de uma companhia. As abordagens dependem de vários fatores, como o perfil dos profissionais que vão trabalhar no projeto e a lucidez, de quem os contrata, em entender o impacto de suas ações também no entorno, em termos sociais, culturais e ambientais.

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“Nossa especialidade nunca foi o tratamento de arquivo, por exemplo, e sim o tratamento museológico. Mas em vários momentos trabalhamos em colaboração ou contratamos especialistas dessa área. Houve um grande projeto que eu me recordo e ilustra bem isso: o Museu da Pessoa era o líder de um trabalho para a Ambev. Eles chamaram uma empresa de tratamento de arquivo, a Tempo e Memória, e acharam que para o que a Ambev queria era preciso formar um trio com o conhecimento da Expomus. É bonito, porque o acervo todo de objetos e produtos da Ambev quem tratou fomos nós. A gente sempre compôs alguns projetos modulares assim. Temos a clareza de que há especificidades nesse trabalho. O nosso olhar é patrimonial e de comunicação. Quando a gente mexe coma memória das empresas, a gente congrega esses três conhecimentos, museus, exposições e coleções, e faz coisas diferentes”.

O futuro do pretérito – “Eu acho que para trabalhar com memória institucional tem de existir uma paixão por cultura”, diz a historiadora Carla Nieto Vidal, responsável pelo núcleo de memória e de comunicação institucional da Expomus. “É entender que a empresa produz cultura e que sustentabilidade é um tripé social, econômico e profundamente cultural”. Nos anos 90, Carla, ainda na universidade, começou a trabalhar na área e estagiou no centro de memória da Natura que hoje por sinal tem a gestão feita pela Expomus. Ela conta que o dilema de muitos estudantes era o seguinte: quase não havia campo de trabalho para o historiador e o mundo empresarial trazia novas possibilidades de atuação. Por outro lado, caía sobre essa atuação uma cortina de preconceito, uma crítica, como se fosse uma “concessão ao capital”. Muita gente “cedeu”, mesmo que temporariamente. Era onde havia mais trabalho. No fim, quem ficou desenvolveu a carreira nesses temas, que também evoluíram. Se antes o foco era mais na questão do processamento do acervo, do arquivo, e boa parte da produção era considerada chapa-branca, com o surgimento de metodologias mais modernas de escuta, os mais variados recursos de documentação, além de mudanças e demandas da sociedade, o trabalho vai ficando arejado e o olhar para a história passa a ser mais questionador.

Quando documenta patrimônio cultural, intelectual e de experiência, o historiador se converte em uma espécie de investigador analítico Foto: Reprodução

“Hoje o tempo é complexo, de trabalhar memória e ética [nas empresas], de cair todas as vestes”, avalia Carla. “Nós, por exemplo, estamos fazendo um plano museológico para a Camargo Corrêa em um momento superdelicado. Estamos fazendo um plano para a Fundação Dom Cabral, porque ela quer saber o que é feito de sua memória”. De certa forma, para as empresas, o trabalho investigativo do historiador ajuda a entender as próprias fragilidades.

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 “Nesses processos, o mais importante é que também a gente consegue ver todas as sinergias do diagnóstico. Toda a cadeia produtiva da cultura que essa empresa pode fomentar na comunidade em que atua ou além”. O diagnóstico é um tipo de projeto fundamental e de futuro. “Eu fiz projetos de pesquisa profunda para atender o presidente que vinha assumir a América Latina de uma empresa. Ele tinha que saber a base complexa de problemas, tudo o que estava envolvido na história. E soube”.

Marketing e história oral – Formada em história no fim da década de 80, Márcia Ruiz tem pós em administração e extensão em administração e marketing. Atualmente, dirige a área de memória institucional do Museu da Pessoa, em São Paulo. Virtual e colaborativo desde a fundação, em 1991, e antes do surgimento da internet, seu objetivo mais amplo é transformar em conhecimento as histórias de vida das pessoas, contadas por elas mesmas – os depoimentos são coletados por meio da metodologia da história oral. O braço de memória institucional surgiu naquele mesmo contexto dos anos 90 em que as empresas começavam a repensar de alguma forma sua gestão e trajetória e celebravam efemérides. A ideia era obter sustentabilidade para o museu e sua missão ao desenvolver produtos que falassem de cada companhia não só pelo olhar do fundador, mas na voz de toda pessoa que fizesse parte dela.

Em projetos de prestação de serviço para empresas públicas e privadas, o museu trabalha com registro, sistematização, preservação da memória. Uma de suas premissas é que a história das empresas não pertence só a elas, faz parte da memória do país. “Se você pegar a história do grupo Votorantim, por exemplo, com certeza ele conta o processo de desenvolvimento industrial do Brasil.” Márcia acredita que é nesse contexto que a profissão de historiador vem sendo ampliada em termos de mercado de trabalho. “A empresa precisava de um historiador. Contratava o especialista para tratar os dados e isso trazia uma credibilidade para o que estava sendo feito em função dessa interpretação do passado e da narrativa”.

Segundo ela, nas últimas três décadas o estudo pela memória tem se intensificado no âmbito acadêmico e empresarial não só entre os historiadores, mas na área de administração e marketing, porque é uma ferramenta de usos diversos. Ao pensar em estratégias de inovação, por exemplo, buscam-se referências na memória. O mesmo ocorre na comunicação interna ou externa, na valorização dos funcionários, no posicionamento da marca, na gestão do conhecimento. “Além disso, a busca da memória pela sociedade pós-moderna vem contrapor a aceleração do tempo. Acho que a memória serve um pouco para nutrir a identidade individual e coletiva e atribuir sentidos à realidade. E quando você começa a trabalhar a história oral, falando das pessoas que contam a trajetória das organizações, você acaba trazendo uma humanização e ao olhar essas informações de caráter histórico de alguma forma também traz transparência para as relações com fornecedores, funcionários, comunidade, acionistas. Isso fortalece a reputação da empresa”.

Ao fazer um levantamento sobre o mercado, Márcia identificou que hoje há no Brasil oito consultorias de memória institucional que são referência no trabalho que desenvolvem. Elas foram contratadas por 329 empresas de grande porte. “É um mercado ainda muito pouco explorado e tenho a impressão de que vão surgir ainda mais oportunidades para o historiador no âmbito administrativo e de marketing. As empresas estão olhando muito para a reputação em função da concorrência e tal. E tem um detalhe: quando o historiador começa a trabalhar com uma empresa, é diferente de criar teses e hipóteses na academia. Você faz o conteúdo, faz a pesquisa profunda que tem uma pegada mais de comunicação e uma linguagem que não é acadêmica, porque não faz sentido, mas simplesmente não pode se manter no papel do historiador convencional. Se fizer isso, você não devolve nada dessa pesquisa para o público, seja ele qual for. Você não diz do que fala essa memória, essa trajetória. Então, o papel do historiador é dar um uso para isso. Não vale fazer memória pela memória. Você tem de dar uso para isso”.

(*Sugestão de leitura e referência em projeto de memória empresarial: Pioneiros & Empreendedores, a saga do desenvolvimento no Brasil é uma trilogia de Jacques Marcovitch publicada pela Edusp e Saraiva e que deu origem a um projeto museológico de preservação da memória dos empreendedores brasileiros, o que inclui uma exposição. O trabalho de arquivistas, pesquisadores, museólogos e etc. é baseado em mais de dez anos de pesquisas da USP coordenadas pelo professor Marcovitch e que mostram quais eram as questões desses pioneiros em diferentes áreas, o que os unia ou distinguia e como suas histórias “influenciaram de forma decisiva a história do Brasil”.)

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