As denúncias sobre interferência no conteúdo do Enem revoltaram especialistas e autoridades, mas não dá para acreditar quando Jair Bolsonaro diz que está com a “cara do governo”. O exame não vai perguntar se a Terra é redonda. É preciso se preocupar com as ausências. Será um Enem sem as questões que claramente não tinham “a cara do governo”. E sobre o que elas falavam? Sexualidade, gênero, racismo? Tinham músicas ou trechos de livros de autores considerados esquerdistas?
O processo de montagem da prova é complexo. Não é nada fácil uma pessoa, por mais mal intencionada que seja, incluir uma pergunta do gosto do presidente. Existe no Inep o chamado Banco Nacional de Itens, que é abastecido por questões feitas por professores de universidades contratados há anos para isso. Elas são ainda pré-testadas antes de entrarem no Enem, ou seja, aplicadas a adolescentes do ensino médio. É assim que se sabe se elas foram consideradas fáceis ou difíceis.
O Inep não fez pré-testes em 2020 e 2021, por causa da pandemia. As questões que estão à disposição para serem usadas foram feitas em 2019 ou antes. E não são muitas, já que há dois anos também não se abastece o banco.
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Esse é um problema antigo, só agravado pela covid. Especialistas já sugeriram até que o governo comprasse questões de empresas para aumentar o banco e dar mais opções às equipes que montam as provas. Além disso, muitas feitas por aqui são até descartadas porque não dão conta de avaliar corretamente, de acordo com a metodologia da prova, a Teoria de Resposta ao Item (TRI).
Algumas induzem ao erro ou têm duas alternativas que parecem corretas até para o melhor aluno. O número total de itens no banco é sigiloso, mas estima-se que haja hoje centenas de questões apenas, o que é pouco, já que cada prova usa 180 deles.
Então, o cenário na sala segura do Enem era o seguinte: um banco de itens com poucas opções somado à pressão para fazer uma prova sem questões que seriam alvo de reclamação dos bolsonaristas. A única alternativa era passar o facão. Dificilmente enunciados foram mudados. Ou termos da preferência do pastor Milton Ribeiro incluídos em perguntas. Isso prejudicaria a métrica e apareceria nas notas. Tanto é que, depois do facão, eles tiveram de recolocar 13 das questões.
Não veremos domingo um exame com cara de Bolsonaro ou com ideias de Olavo de Carvalho. Mas a interferência político-ideológica pode ter retirado conteúdos importantes, que vão ficar escondidos para sempre das escolas e da sociedade brasileira. Por pressão do presidente da República, não se pode decidir o que universidades querem saber de seus candidatos. Muito menos o que professores devem deixar de ensinar – o exame tem também a função de sinalizar o currículo. Anos e anos dessa interferência, somente pela ausência, podem ser devastadores para a educação brasileira.
*É REPÓRTER ESPECIAL DO ‘ ESTADÃO’ E FUNDADORA DA ASSOCIAÇÃO DE JORNALISTAS DE EDUCAÇÃO (JEDUCA)
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