Até então não se sabia que aquilo acontecia entre os cachorros. Mas, um certo dia, um grupo de cães de caça trocava ideia num pet-shop, um poodle ouviu o papo e contou a um fox paulistinha. Foi mais ou menos assim.
"Estamos entre iguais aqui, por isso posso falar à vontade: se tem um cachorro que eu abomino é o vira-lata. " - disse um dos cães de caça.
Houve um consentimento geral entre os outros. O maior de todos deu um latido concordando:
"Vira-latas são como ratos. Estão em todos os cantos minando o bom nome canino. Não me dirijo a eles. Quando vejo um, com aquele focinho de ratazana, se não estiver de coleira, mudo de calçada."
Um outro acrescentou:
"E o jeito que eles mijam? Com as suas perninhas tortas. E depois ficam raspando o chão com aquelas unhas nojentas, agh!!"
Uma cadela de caça, vestindo uma jaqueta verde-selva, deu seu ponto de vista:
"Pior: eles comem ração como comemos. Se a gente bobear, com essa escassez toda, uma hora não sobra nem passarinha de boi pra gente!"
O ódio em relação aos vira-latas estava longe de ser isolado. Ele tomava conta de vários pontos do país e não era apenas anti-viralatismo; mas também um virulento anti-toyismo.
Para os cães de caça, que se julgavam uma raça superior, os cães toys, de miniatura, eram anões degenerados e precisavam ser definitivamente eliminados. Os vira-latas deveriam ser marginalizados da sociedade: puxar trenós no gelo na Patagônia, trabalhar como cães farejadores em minas de carvão ou ser cães de tribos indígenas no Alto Xingu.
Não demorou para manifestações violentas começarem a ocorrer. Nos parques, os cães de caça faziam barreiras que impediam vira-latas de entrar. Centenas de poodle toys, yorkshires micro e pinschers também foram atacados ao tentar urinar em muros de casas onde viviam os que se supunham de raça superior.
O Kennel Club procurava manter neutralidade nos episódios, apesar da imprensa especializada em pets começar a pressionar fortemente por uma posição mais clara.
A discórdia canina já preocupava até o governo central. Isto porque as brigas entre os cães aumentava a lotação das carrocinhas, o que onerava o Erário Público.
A situação ganhou contornos críticos quando, numa apresentação de circo, um sabujo atacou um chihuahua equilibrista e o público revoltado tocou fogo na lona.
Era preciso reagir urgentemente. Representantes do Ministérios da Saúde reuniram-se com técnicos em Direitos dos Animais da ONU e propuseram uma resposta imediata à crise. A ideia foi polêmica e muitos dos delegados presentes foram contrários, já que a implementação poderia trazer até mesmo desequilíbrio ambiental.
Só que, para o bem o para o mal, acabaram aprovando-a: numa madrugada, milhões de gatos foram soltos nas ruas das principais capitais.
Em menos de uma semana não havia mais racismo. Pelo menos entre os cães.