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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|A parada dos homens minúsculos

Os tempos são sombrios, e a sombra de solidões reunidas mantêm homúnculos em nossas vidas

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Foto do author  Renato Essenfelder
 

arte: renato essenfelder/sd

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»A solidão das pessoas que se juntam é mesmo uma coisa horrível. E perigosa.

Eu pensava nisso enquanto assistia à última manifestação dos solitários da avenida Paulista. Homens, sobretudo, mas também mulheres, nos seus 50, 60 anos ou mais, performando publicamente a sua solidão. Histéricos embrulhados em panos chamativos. 

Solitários, e não manifestantes, nunca militantes, jamais ativistas. Apoiam, afinal, o quê? Parada de paranóicos, infestação de infelizes, festejar de fanatismos. Queixam-se da ditadura que não há, armam-se contra o comunismo que não existe. Lamentam as ficções de um tenebroso Marajó imaginário enquanto fazem ouvidos moucos - cegos, surdos e loucos - para as tragédias cotidianas, os Marajós de todo dia.

Abraçam-se e cantam, juntos, para afastar suas solidões por um dia. Ao menos por um dia.

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Fracassam, e o seu fracasso é o fracasso de toda a civilização. Em vez de afastar o mal, criam-no. Cem, duzentos mil solitários. O número pouco importa para preencher o vazio, mas é suficiente para causar barulho, conjurar monstros esquecidos.

A solidão das pessoas que se juntam é mesmo uma coisa horrível. Parece haver uma barreira entre os corpos, um manto intransponível de ressentimento. Os sujeitos que enchem as ruas nunca se tocam, apenas suas solidões.

Unem-se em torno de espantalhos. Alimentam os demônios que dizem combater.

Os solitários ocupam o mesmo espaço ao mesmo tempo, frequentam os mesmos grupos em redes sociais, compartilham da mesma alucinação, mas jamais se encontram. Para encontrar é preciso sair de si, abrir-se, aceitar.

Mas eis que aceitam, apenas, o homem minúsculo, o covarde, o entrincheirado, e nisso também se apequenam.

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Tornam-se cada dia menores, reunidos em torno do homúnculo que se alimenta de suas solidões e ressentimentos. Fazem de messias a figura patética e covarde que em outros tempos teria entrado e saído de nossas vidas sem consequências, expulsa por um sopro, um dar de ombros, um peteleco - como uma mosca incômoda e persistente.

Confundem moscas e messias.

Mas os tempos são sombrios, e a sombra de solidões reunidas mantêm homúnculos em nossas vidas.«

 

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+redes sociais do autor+

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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