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Retratos e relatos do cotidiano

Trabalhei muito, dormi pouco, comi mal e me sinto diariamente culpado

Até quando nos julgaremos tão devedores de nós mesmos?

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Por Ruth Manus

Comecei o dia furiosa comigo porque não fui à academia. Era para eu ter acordado mais cedo, enfiado aquele legging e corrido 5km. Não consegui, não fiz nada disso. Enfiei uma fatia de pão na torradeira e me culpei por ter colocado um pouco de manteiga ao invés de uma ricota magra sem sal.

 

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Olhei para a minha agenda e direcionei o olhar diretamente para todas as pendências. Documentos que não enviei, faturas que não emiti, contratos que não revisei, e-mails que não respondi, ligações que não retornei. Não fazia nem meia hora que eu estava acordada e eu já era uma lamentável devedora de mim mesma.

 

Entrei no banho com a cabeça acelerada e uma dose semi invisível de raiva de mim mesma porque eu nunca consigo cumprir minhas metas intermináveis. Parecia que eu não havia feito nada na véspera, quando, na verdade, fiz muito. Percebi que havia algo de muito errado nisso e disparei mensagens nos meus grupos de amigos perguntando se eles sentiam a mesma coisa.

 

As respostas foram unânimes: todos se sentem absolutamente devedores de si mesmos. Entramos numa lógica cruel que funciona mais ou menos assim: praticamente não importa o que a gente fez de bom, só importa aquilo que ficou faltando. Tudo o que ficou faltando, grita dentro da nossa cabeça como se estivesse escrito em caixa alta.

 

Hoje eu trabalhei muito. MAS NÃO FUI À ACADEMIA. Hoje fui à academia. MAS COMI AQUELAS PORCARIAS NO ALMOÇO. Hoje eu comi bem. MAS NÃO ENTREGUEI O RELATÓRIO. Hoje eu terminei o relatório. MAS NÃO LIGUEI PARA A MINHA AVÓ. Hoje eu falei com a minha avó. MAS NÃO RESOLVI AQUELAS COISAS DO BANCO. Hoje eu fui ao banco. MAS ACABEI TRABALHANDO POUCO. Hoje trabalhei muito. MAS DORMI POUCO. Hoje dormi bem. MAS ACORDEI TARDE.

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Começa a dar uma certa falta de ar, uma angústia que se instala entre o estômago e garganta e que nos diz que somos pouco, que fazemos pouco, que concretizamos pouco. É como se nós fossemos chefes de nós mesmos- e aqueles chefes da pior espécie, que não reconhecem os trabalhos bem feitos e as tarefas finalizadas, mas apenas o que ficou pendente. Um chefe que berra palavras de frustração na nossa orelha e que em nada contribui para melhorarmos.

 

Temos muita coisa para fazer, não tem jeito. E talvez o pior não seja o fato de termos tudo isso, mas sim o fato de lidarmos tão mal com a nossa rotina e com a finitude da nossa capacidade. Não me parece que a solução seja sempre a de nos esquivarmos das tarefas (embora às vezes seja necessário). O que me parece necessário é pararmos de sentir tanta culpa. Não somos máquinas e nunca funcionaremos com perfeição.

 

Precisamos parar de nos comparar com a amiga que posta foto na academia às 6 da manhã. Com o primo que milagrosamente consegue ser o filho perfeito. Com a vizinha que tem uma casa impecável. Com o colega que nunca sai da linha na alimentação. Com aquele casal de pais que parece nunca errar. Com a amiga está sempre vestida como capa de revista.

 

Acho que a gente só precisa tentar ser a nossa melhor versão. E a nossa melhor versão não vive nesses picos de stress, nem com essa angústia instalada. Temos que ser mais compreensivos com as nossas pequenas grandes falhas. Deveríamos reservar a caixa alta para tudo o que foi feito e não para o que ficou faltando. Porque não parece justo que sejamos justamente nós aqueles que são mais cruéis e mais duros conosco.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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