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Ser mãe é padecer na internet

Opinião|Gravidez de Claudia Raia: vamos conversar sobre óvulos?

Temos uma oportunidade e tanto para esse papo

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Ilustração: Nadezhda Moriak, Pexels Foto: Estadão

Desde que a atriz Claudia Raia revelou há pouco mais de uma semana que está grávida aos 55 anos, um debate imenso começou nas redes sociais: 'ela conseguiu engravidar naturalmente? Não é possível!', foi uma das coisas que lemos dos mais incrédulos. 'Por que não revelou que fez uma fertilização in vitro? Isso é um desserviço para todas as mulheres que podem pensar que depois dos 40 para engravidar é só querer!', disseram outras que, claro, foram rapidamente pelo caminho do julgamento, como se uma mulher, por ser famosa, tivesse obrigação de contar todos os passos de sua gestação, só porque revelou publicamente a gravidez.

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Aos poucos, Claudia 'abriu' um pouco sobre o assunto: afirmou que engravidou naturalmente, depois de uma tentativa frustrada de FIV, que é quando a clínica de fertilização faz o encontro entre óvulo e espermatozoide em laboratório e implanta o embrião já 'pronto' no útero da mulher. (Em entrevistas anteriores já tinha contado que aos 48 anos decidiu congelar seus óvulos, na esperança de ser mãe novamente.) Embora essa tentativa de reprodução assistida não tenha dado certo, ela engravidou na sequência, graças aos hormônios que estava tomando e que a tiraram temporariamente da menopausa. A vida íntima de ninguém deveria ser objeto de fact-checking, então vamos deixar essa história de lado e focar no que interessa: no 'serviço', que é o que jornalismo sabe fazer de melhor.

A gravidez natural depois dos 55 anos é possível, embora seja raríssima, menos de 1% de possibilidade. E mesmo com a ajuda das clínicas de fertilização pode ser algo difícil de conseguir e um dos motivos são os nossos óvulos, que também envelhecem. Estamos cada vez mais cheias de vida depois dos 40, ainda bem, mas os nossos óvulos não. E é por isso que precisamos conversar sobre eles. Adiamos a gravidez porque queremos fazer uma série de coisas antes da maternidade mas, muitas vezes, quando nos sentimos prontas, nosso corpo não está mais. "Infelizmente para nós mulheres é assim. É feio falar, mas a gente tem 'prazo de validade'. Diferente do homem que nasce e continua produzindo os espermatozoides, a mulher já nasce com todos os óvulos e vai 'gastando' isso ao longo da vida. Depois dos 30 anos, começa-se a ter uma perda de qualidade dos óvulos, algo que vai se acentuar depois dos 35 anos, com uma queda tanto de quantidade como de qualidade desses óvulos. E isso depois do 40 despenca, vai lá pra baixo", explica a médica Ana Paula Aquino, especialista em Reprodução Assistida e médica responsável pelas doadoras no programa DOE (Doação de Óvulos e Embriões) da Clínica Huntington.

Blog: Eu que a grande preocupação das pessoas era, 'ah, ela está grávida com 55 anos, ela afirmou que foi natural e com isso fica a impressão de que é muito fácil'. Mas não é, depois dos 35 fica estatisticamente cada vez mais difícil.

Ana Paula: Infelizmente os nossos ovários não acompanharam a nossa vida de ir fazer mestrado, doutorado, viajar, fazer curso, priorizar o trabalho. Eles não entendem isso, para eles a gente está ótima para engravidar aos 18 anos, que é quando temos óvulos de boa qualidade. E se a gente começa a esperar muito a qualidade vai cair, infelizmente. Hoje em dia o que a gente vê muito são mulheres de 40 anos querendo engravidar. O sêmen do homem de 40 anos tem 3 meses (de idade), já o óvulo da mulher de 40 anos tem 40 anos, e isso traz um peso muito grande para a geração de um futuro bebê.

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Blog: Essa perda de quantidade e de qualidade desses óvulos é maior dificuldade para conseguir engravidar?

Ana Paula: Muitas vezes sim. Mas a gente não pode falar que a quantidade baixa de óvulos é um fator de infertilidade para essa mulher se ela ainda não tentou engravidar. Tem muita gente que chega à clínica achando que pela idade está com uma reserva ovariana muito baixa, 'ah, eu sou infértil, eu não vou conseguir engravidar com esses poucos óvulos. Mas você já tentou engravidar antes? A gente não tem como saber sem tentar', eu digo. Mas se ela já está tentando engravidar por um tempo razoável depois dos 35, por seis meses por exemplo, e não está conseguindo, essa baixa quantidade e qualidade pode ser um fator de infertilidade com certeza. E depois dos 35 anos e mais próximo dos 40 anos a gente começa a ver que essa baixa qualidade do óvulo pode influenciar na qualidade do embrião, na formação de embriões com alterações genéticas.

Blog: Sabendo que o nosso corpo está pronto aos 18, mas nem todo mundo quer ser mãe aos 18, o que é que a gente tem que pensar quando planeja o futuro?

Ana Paula: Idealmente a gente já queria que todo mundo pensasse nisso próximo dos 20 anos, mas é muito complicado. A pessoa acabou de sair da adolescência, está entrando na faculdade, vai começar no primeiro emprego, então eu acho ainda muito complicado. Mas a partir dos 30 anos a maioria das mulheres já tem uma vida mais estabilizada, já fez faculdade, tem uma vida mais estável e já pode pensar se ela quer ou não ter filhos naquele momento. Então eu acredito que ali próximo dos 30 anos, antes dos 35, nessa faixa, seria o momento ideal da mulher começar a pensar realmente se ela quer engravidar e tem gente que vai falar 'eu nem sei o que eu quero', mas isso também é importante, falar que não sabe. Porque a gente muda muito, em 5 anos, em 10 anos a gente é outra pessoa.

Então se a pessoa não sabe se quer ter filhos ou não, ou sabe que quer, mas não naquele o momento, pensar em preservar a fertilidade congelando os óvulos é uma das melhores opções que a gente tem, porque eu não consigo garantir gravidez, isso a gente não consegue e é importante falar isso, não existe uma garantia, uma certeza que eu vá engravidar, mas eu consigo pausar a minha chance naquele momento. Minhas chances de engravidar por fertilização in vitro, que quando eu congelo o óvulo é a única maneira de eu utilizar esses óvulos, aos 30 anos as chances são 60%, aos 40 já são apenas 30%. Opa, então espera aí, eu posso preservar essa chance de gravidez de 60% se eu quiser engravidar aos 40, 45, quando a minha chance já cai pra menos de 1%. Então eu não garanto gravidez, mas eu preservo essa chance maior de gravidez. Mesmo porque tem o marido também, então a gente não pode achar que depende só do óvulo para engravidar, tem que lembrar que tem a parte do espermatozoide também, mas as chances são muito maiores.

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A médica Ana Paula Aquino  

Blog: Se eu tenho 30 anos e não sei o que vai ser da minha vida no futuro e eu congelo esses óvulos, aí com 40 eu decido ser mãe e vou fazer fertilização in vitro eu vou ter a chance de engravidar daquela pessoa que eu era aos 30 anos, é isso?

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Ana Paula: Exatamente. Tem gente que acha que é a idade dela quando vai engravidar. Não. A idade do útero não me importa, o que me importa é a idade do óvulo. Então se eu congelei aos 30 minha chance é mais alta, se eu congelei aos 35 é um pouquinho menor, mas ainda é mais alta do que aos 40, porque é a idade do óvulo que importa, não depende da idade que eu estou na época que decido engravidar. Ultimamente temos recebido muita gente com 38 anos falando, 'ah, eu vi que o ideal era antes dos 35, mas já estou com 38 e não tenho previsão ou não de ser mãe, vale ou não a pena congelar já que a minha chance está menor?' Eu acho que a gente tem que jogar aberto com a paciente e explicar as chances, a chance de congelar aos 38 é menor do que os 35 anos, então a paciente tem que estar ciente disso, mas às vezes eu ter uma chance um pouquinho melhor do que tentar aos 45, que a minha chance é muito mais baixa. Então a paciente sabendo das chances dela eu acho que é válido sim, mesmo depois dos 35 anos.

Blog: Para essas mulheres que não tiveram a oportunidade de fazer esse congelamento de óvulos e chegam aos 40, aos 45 querendo ser mãe e já não têm mais óvulos viáveis, existe essa possibilidade de receber óvulos doados. Como é que funciona isso do ponto de vista legal?

Ana Paula: O tratamento de ovodoação é permitido sim pelo CFM e a procura tem aumentado cada vez mais. Essas mulheres vão pegar óvulos de mulheres mais novas, com menos de 35 anos de idade e atualmente, pelas novas regras do CFM, é permitido doação até os 37 anos, lá na clínica a gente ainda prefere até os 35, pela melhor qualidade desses óvulos. E quem são essas mulheres? São as que já estão na menopausa, não estão mais menstruando, não produzem mais óvulos, mas querem engravidar mesmo assim. Mulheres que já fizeram múltiplos tratamentos de fertilização in vitro sem sucesso, sem conseguir um embrião viável para transferir. Mulheres que têm algum problema genético, alguma doença genética. Então a gente consegue com a ovodoação tratar diferentes perfis de mulheres. Geralmente, a gente quer que essa mulher tenha um embrião bom e viável para essa gravidez e as chances vão ser daquela paciente doadora, então as chances são de uma mulher com menos de 35 anos, 50 a 60%, que são chances muito boas.

Blog: E essa doação tem que ser anônima ou eu posso receber a doação de um óvulo de alguém da minha família, por exemplo?

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Ana Paula: Desde o ano passado a doação entre parentes é permitida. Então, até antes de junho de 2021 a doação tinha que ser anônima, não era possível conhecer a doadora, a partir de junho de 2021 a doação entre parentes de até 4º grau se tornou possível. Então se eu tenho uma irmã, uma prima, uma tia, elas podem doar os óvulos para mim, normalmente lá na clínica a gente pede uma avaliação psicológica com a psicóloga, que eu acho importante porque têm várias questões envolvidas nisso, que com a doação anônima a gente acaba não tendo, mas é permitido sim.

Blog: Essa avaliação psicológica eu imagino que seja importante porque ali são pessoas que vão ter contato e pode haver ali uma relação meio cinza entre as pessoas, porque a mãe não vai ser aquela que doou o óvulo e sim aquela que vai gestar. Então isso precisa estar muito claro na cabeça da doadora e dessa mulher que vai engravidar.

Ana Paula: Exatamente. Porque a gente não sabe o que pode acontecer. Então, por exemplo, a gente tem duas irmãs, uma delas doou óvulo pra outra, sem problema nenhum, mas aquela que doou de repente tem um problema de saúde e não pode mais engravidar, não tem mais óvulos, teve câncer, tirou o ovário, o único filho genético que ela tem está com a irmã, então assim, são situações muito complicadas que eu acho que durante o acompanhamento psicológico a gente consegue entender se é isso mesmo, às vezes a parente pode falar, 'espera aí, acho que eu não estou preparada para isso, volta um pouquinho'. Então eu acho que isso tudo é importante de ser abordado nessa consulta psicológica para todos os envolvidos estarem cientes dessa zona cinza, como você colocou, que não é muito fácil.

Blog: E quem são essas mulheres anônimas que doam óvulos?

Ana Paula: São mulheres que têm um alto grau aí de sororidade, de solidariedade, que se dispõem a doar, porque diferente da doação de sêmen, que é muito mais simples, na doação de óvulo ela tem que passar por um tratamento semelhante ao da paciente que está fazendo a fertilização in vitro, tomar injeção na barriga, fazer múltiplos ultrassons, anestesia para a coleta. Então uma parte das doadoras são mulheres que se solidarizam com as outras e resolvem ajudar por ajudar mesmo. E tem também as próprias pacientes que têm menos de 35 anos, por exemplo, e o fator de infertilidade delas é masculino, o marido é vasectomizado, por exemplo, então ela precisa de tratamento e para ajudar no custeio do tratamento dela ela vai fazer uma doação de óvulos. Normalmente, são esses dois tipos de pacientes. Lá na clínica também eu posso ter, por exemplo, eu não tenho condições de arcar com o meu tratamento, não posso doar óvulos porque sou mais velha, mas eu tenho uma irmã de 25 anos que pode doar, e com isso reverter numa ajuda no custeio do tratamento dessa paciente.

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Blog: E para isso precisa também de um acompanhamento, uma avaliação psicológica? O que é que tem que ficar claro para essa mulher que está fazendo essa doação além da garantia de que ela vai ser anônima?

Ana Paula: A princípio essa avaliação psicológica não é necessária, mas é explicado tudo muito direitinho, às vezes a preocupação é 'mas vai me conhecer, não vai'. Então a gente deixa muito claro que é tudo anônimo, que ninguém tem contato com ninguém. Essas doadoras passam por uma avaliação médica para ver se está tudo bem, fazem uma contagem de folículos, exames que a ANVISA exige como o de sorologia, a gente pede cariótipo, que é exame genético também, papanicolau, então a paciente acaba passando por um checkup completo ali antes de doar e depois faz a doação.

Blog: E quem faz essa doação não tem de nenhuma forma a sua própria fertilidade prejudicada?

Ana Paula: Não, isso é superimportante dizer, Rita. Quando o ovário está ali funcionando, todo mês ele recruta um conjunto de folículos para ser usado naquele mês, a gente naturalmente 'usa um' e joga o restante fora. Por exemplo, tenho 10 folículos por mês que são 'recrutados' e eu uso um e jogo nove fora - quando eu vou fazer uma doação de óvulos a gente dá hormônio para essa doadora para fazer todos aqueles folículos que foram recrutados crescerem, não só um, mas aqueles 10, por exemplo. E aí ao invés de eu usar um e jogar nove fora, eu vou pegar todos aqueles 10 que ela tinha. Mas eu não mexo na reserva ovariana dela, eu não consigo pegar a mais do que ela 'me deu pra usar', então eu estou pegando o que ela ia jogar fora, mês que vem ela vai ter um novo conjunto de folículos pra usar sem eu ter mexido na reserva ovariana dela. Então tem gente que às vezes fica com medo, 'mas e se eu fizer 10 tratamentos, eu vou entrar na menopausa antes?' Não, porque eu estou pegando o que você ia jogar fora. Então isso é uma preocupação que a doadora não precisa ter por que a gente não interfere na fertilidade dela de maneira alguma.

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Opinião por Rita Lisauskas

Jornalista, apresentadora e escritora. Autora do livro 'Mãe sem Manual'

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