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História, política e cultura do esporte.

Enquanto CBF omite camisa 24, alguns clubes dão passo adiante na história

Vasco puxa fila e times finalmente levam ações efetivas para dentro de campo no mês do orgulho. Comemoração de Cano em São Januário é uma imagem de valor incalculável

Foto do author João Abel
Por João Abel
Atualização:

Junho não é um mês trivial para o futebol. Quatro das cinco estrelas que o Brasil carrega no peito foram conquistadas no sexto mês do ano. É um período em que tradicionalmente se joga Eurocopa, Copa América e Copa do Mundo. Junho também é o mês do orgulho LGBT, de combate à discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. Em 2021, o mês que se encerra nesta quarta, 30, mostrou que, muitas vezes e infelizmente, futebol e preconceito andam lado a lado. Mas também mostrou que avançamos.

Cano e a celebração histórica: atacante do Vasco ergueu a bandeira LGBT Foto:

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Entre ruins e bons exemplos, comecemos por quem segue pisando na bola. Além de toda a turbulência envolvendo a realização da Copa América, o afastamento dos clubes que querem uma liga independente e as acusações de assédio ao ex-presidente, a CBF se viu em maus lençóis até na numeração dos jogadores da Seleção.

O Brasil é o único país do torneio continental a ‘pular’ a camisa 24 na lista de atletas. A numeração começa no ‘1’ de Alisson e segue sem interrupções até o ‘23’ de Ederson, quando, de repente, salta para o ‘25’ de Douglas Luiz.

No Brasil, historicamente jogadores de futebol evitam o uso da camisa 24. Quando o regulamento do campeonato exige que seja utilizada, como na Libertadores, ela geralmente cai nas costas do terceiro goleiro do time ou de algum jogador estrangeiro. Isso porque o motivo de sua rejeição é uma verdadeira jabuticaba: em terras brasileiras, o 24 é associado ao homem gay por ser o número do veado no jogo do bicho.

Nesta quarta, 30, um juiz da 10ª Vara Cível do Rio de Janeiro determinou que a CBF explique a ausência da camisa. Procurada pela coluna, a CBF não se manifestou sobre o assunto até a publicação deste texto.

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Brasil é único país da Copa América sem camisa 24 Foto:

Ok, mas os jogadores podem simplesmente evitar o 24 por não gostarem do número, certo? Errado. Uma coisa é desprezar um número por simpatia, motivos pessoais. Outra coisa é o desprezo por uma homofobia internalizada.

O levantamento a seguir, feito pelo colunista que vos escreve, mostra a quantidade de jogadores que usam cada uma das camisas disponíveis entre as séries A e B do Campeonato Brasileiro. Observem o bizarro abismo do gráfico quando chega no 24. É um número simbólico que nos dá abertura pra discutir por que a homofobia é algo internalizado no futebol e na sociedade brasileira.

24 ainda é evitado pela maioria dos clubes nacionais Foto:

Gosto sempre de dar um exemplo pessoal sobre a repulsa ao 24 para mostrar que ela não se restringe ao futebol. Há 17 anos, quando um dos meus tios foi pai pela terceira vez, o parto cesariana estava programado para acontecer em um dia 24. O bebê era um menino e ele pediu à esposa e ao obstetra que mudassem a data para o dia 25. Esse é o nível de fragilidade que a masculinidade pode atingir no nosso país.

Das redes para, finalmente, dentro de campo. De 2017 para cá, clubes brasileiros começaram a publicar mensagens no Dia do Orgulho LGBT, 28 de junho, em suas redes sociais. A alcunha do ‘time de todos’ e os pedidos de ‘respeito à diversidade’ invadiram a timeline. Eles, afinal, perceberam que torcedores LGBTs existem. Mas 2021 marca uma virada de ações mais efetivas em algumas dessas equipes.

O Flamengo entrou em campo contra o Juventude, pelo Brasileirão, carregando as cores do arco-íris em sua numeração. As camisas serão leiloadas pela plataforma Play For a Cause e a renda revertida para a Casa Nem, no Rio, e a Manifesta LGBT, em Manaus, centros de acolhida LGBT.

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O rival Vasco não deixou por menos. Historicamente ligado a bandeiras sociais como a luta antirracista, o cruz-maltino exibiu para todo o Brasil a expressão ‘RESPEITO’ nas arquibancadas de São Januário, levou os tons da bandeira LGBT em sua tradicional faixa diagonal do uniforme, lançou um poderoso manifesto nas redes e ainda viu o artilheiro argentino Germán Cano protagonizar uma das cenas mais bonitas e simbólicas da história do nosso futebol.

Nas arquibancadas de São Januário, um pedido básico: respeito Foto:

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A bolha do futebol é uma das mais difíceis de quebrar quando o assunto é homofobia, mas também é uma das mais importantes. É o esporte mais popular do Brasil, elemento central da nossa cultura e, portanto, um aliado fundamental na desconstrução do preconceito no país que mais mata LGBTs no mundo.

O alcance do gesto de Cano ao erguer a bandeira LGBT, como quem erguia um troféu pelo Vasco, é incalculável, porque envia a mensagem justamente a boa parte do público que precisa entender a dimensão desse problema. Segundo mapeamento da consultoria Armatore, 62% dos comentários sobre o manifesto vascaíno no Twitter foram positivos.

De quebra, a camisa comemorativa com a ‘faixa arco-íris’ esgotou em poucas horas nos sites de vendas. Será que os clubes vão finalmente se dar conta de que estão perdendo dinheiro ao excluir uma parcela significativa de seus torcedores?


O Flu também entrou em campo com as cores do orgulho. O Botafogo estampou a tag #AmorÉAmor. O Bahia lançou oficialmente a camisa da torcida LGBTricolor. O Sport Recife firmou parceria com o Instituto Boa Vista, ONG de pautas LGBTQIA+.

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Que cada vez mais clubes e atletas entendam seu fundamental papel no bonde da história.

*João Abel é editor do Drops, no Instagram do Estadão, autor de ‘Bicha’ e coautor de ‘O Contra-Ataque’. Escreve às quartas-feiras.

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