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História, política e cultura do esporte.

Onde estão os atletas negros nos Jogos Olímpicos de Inverno?

Em quase cem anos, apenas 19 negros subiram ao pódio. Cotas continentais impulsionaram atletas africanos, mas foram revogadas pelo COI para a atual edição

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Foto do author João Abel
Por João Abel
Atualização:

No começo de 2018, a norte-americana Elana Meyers já tinha conquistado duas medalhas no bobsled em Jogos Olímpicos de Inverno: um bronze em Vancouver-2010 e uma prata em Sochi-2014. Ela tinha ainda quatro medalhas de ouro em campeonatos mundiais. Ainda assim, ouviu de um treinador que ‘negros não tinham capacidade mental para dirigir um trenó’.

A revelação foi feita em uma carta aberta publicada pela atleta no site do Team USA. Depois de ouvir o comentário racista, Elana ainda ganharia uma nova prata nos Jogos de Pyeongchang-2018.

Elana Meyers eLauryn Williams garantiram a prata na prova de duplas do bobsled Foto: Doug Mills/NYT

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A presença de negros é historicamente pequena em Olimpíadas de Inverno. O quase centenário evento teve sua primeira edição em 1924 e já distribuiu mais de 2 mil medalhas. Mas de lá para cá, apenas 19 negros e negras subiram ao pódio. Todos eles eram competidores de apenas quatro países: Estados Unidos, Canadá, Grã-Bretanha Alemanha.

O branco da Olimpíada não está apenas no tom da neve. A esmagadora maioria dos atletas é branca. Quando assistir aos eventos da atual edição dos Jogos, sediada em Pequim, que teve sua cerimônia de abertura nesta sexta, 4, faça as contas: quantos competidores pretos você vê?

A baixa presença de esportistas negros é, em primeiro plano (e corretamente), atrelada à força dos esportes de inverno em países do hemisfério norte. Em especial na região nórdica, onde o clima frio e o gelo são parte não só das modalidades, mas da rotina da população. E onde a maior parte das pessoas é branca.

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É muito simplista, no entanto, explicar a falta de diversidade racial apenas pelas coordenadas geográficas. O abismo social e a falta de acesso a esportes elitizados são chaves para entender o fenômeno. São modalidades caras. Um trenó de bobsled de alto nível, usado na Olimpíada, pode custar até US$ 100 mil (mais de R$ 500 mil).

Um contexto que torna os Jogos de Inverno uma vitrine do racismo estrutural de muitas nações do mundo ocidental.

Cerimônia de abertura dos Jogos de Inverno ocorreu nesta sexta, no Ninho do Pássaro. Elana Meyers, ao lado deJohn Shuster, foi porta-bandeira da delegação dos EUA Foto: REUTERS/Phil Noble

Países multiculturais como Estados Unidos, França e Grã-Bretanha tradicionalmente trazem medalhas para casa nos Jogos de Inverno. E são lugares onde os negros, há decadas, tornaram-se protagonistas nas modalidades de verão.

A seleção francesa de futebol, ao vencer as Copas do Mundo de 1998 e de 2018, foi exaltada pela capacidade de unir blacks, blancs e beurs (pretos, brancos e árabes). Por que a diversidade não dá o tom também nos esportes de neve?

O Canadá se tornou outro exemplo no futebol. Quando se pensa em esporte coletivo no país, o hóquei é o primeiro jogo que vem à mente. Mas agora, com a bola no pé, eles estão a um passo da Copa do Mundo do Catar. Graças a atletas… negros. Eles são maioria no time que está invicto nas eliminatórias e muito perto de assegurar a vaga ao mundial. O grande craque? Alphonso Davies. Negro, nascido em Gana e naturalizado canadense.

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No Canadá, diversidade racial tomou conta de esportes 'de verão'. Na foto, Alphonso Davies, principal jogador da seleção de futebol Foto: Twitter/CanadaSoccer

O histórico dos pretos na neve

A primeira atleta negra a subir em um pódio em Olimpíadas foi a nova-iorquina Debi Thomas, que levou para casa o bronze na patinação artística nos Jogos de 1988, em Calgary, no Canadá.

Debi fez história, ainda que sua vida não tenha virado filme como a da também patinadora olímpica Tonya Harding, com ‘Eu, Tonya’, indicado ao Oscar em 2018.

Só em 1988, a primeira medalha de uma atleta negra: Debi Thomas, na patinação artística Foto:

Se Debi Thomas não virou filme, a equipe de bobsled da Jamaica que também disputou os Jogos de Calgary-1988 inspirou uma produção cinematográfica: Jamaica Abaixo de Zero (1993). À época, os jamaicanos cravaram seu nome nas Olimpíadas com a primeira participação do país, majoritariamente preto, no esporte em que o trenó desce uma imensa pista de gelo.

São os esportes de velocidade, como o bobsled, que mais abrem espaço para competidores pretos nos Jogos de Inverno. Isso porque, na maioria das vezes, eles são pinçados das equipes de atletismo, onde se destacam para as modalidades ‘geladas’.

É o caso de Lauryn Williams. A norte-americana levou a prata nos 100 metros rasos nos Jogos de Atenas-2004 e o ouro no revezamento 4x100m em Londres-2012. Dois anos depois, como num ‘choque térmico’, migrou para os Jogos de Inverno e foi medalhista de prata com a equipe de bobsled dos EUA em Sochi-2014.

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Até hoje, apenas seis atletas atingiram esse feito: conquistar medalhas tanto nos Jogos de Verão, quanto nos de Inverno. Lauryn é a única preta da lista.


Uma voz africana por cotas olímpicas

Os Jogos de Pequim-2022 terão apenas 6 atletas africanos: dois de Madagascar, uma da Eritreia, um de Gana, um de Marrocos e um da Nigéria.

O Comitê Olímpico Internacional pouco tem feito para ajudar nos problemas enfrentados por atletas da África e de outras regiões, como o Caribe, onde treinar para as modalidades de inverno não é simples. Os custos são altos e faltam instalações e equipamentos adequados para praticar os esportes em alto nível.

Para piorar, o COI revogou cotas continentais que tinha estabelecido na última edição, em 2018, e que colocaram atletas africanos em condição de atingirem o índice olímpico em esportes como o bobsled e o skeleton.

Akwasi Frimpong em ação nos Jogos de PyeongChang, em 2018 Foto: REUTERS/Edgar Su

Foram as cotas que permitiram, por exemplo, a classificação do ganês Akwasi Frimpong, atleta do skeleton, na última Olimpíada. Ele à época, estava em 99º lugar no ranking mundial, mas conseguiu uma vaga e ganhou o carinho da torcida em PyeongChang. Tornou-se uma referência para seu continente nos esportes de inverno.

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A oportunidade na Olimpíada impulsionou a carreira de Frimpong, que, em 2020, foi o primeiro africano a vencer uma prova internacional de skeleton, em Utah, EUA.

Para 2022, o atleta de Gana estava prestes a conseguir um lugar nos Jogos Olímpicos sem cotas. Ele vinha em 63º lugar no ranking, precisando chegar entre os 60 primeiros para ir às Olimpíadas, faltando três corridas para o final da classificação. Foi quando testou positivo para COVID-19 em 29 de dezembro e não pode mais somar pontos.

O fim das cotas anunciado pelo COI foi como um soco no estômago do atleta, que será uma ausência marcante nos Jogos de Pequim.

“Meu sonho e meu trabalho duro foram arrancados de mim devido a algo fora do meu controle”, afirmou à Reuters. Pelas redes sociais, ele tem protestado contra a decisão do Comitê Olímpico.


Seus treinadores, Brian McDonald e Zach Lund, escreveram uma carta ao COI dizendo que o fim do sistema de cotas continentais é um ‘golpe esmagador’ nos atletas africanos e que "o Comitê seria negligente se não aproveitasse esta oportunidade para mais uma vez crescer o interesse no esporte".

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A história de Frimpong, o ‘Black Ice’, se tornou um belo curta-metragem, lançado mês passado e que já tem quase um milhão de views no YouTube. Vale assistir (em inglês):

Quantas histórias como essa não poderiam inspirar o sonho de crianças negras?

Mas “até para sonhar tem entrave”, como cantou Larissa Luz, em ‘Ismália’, com Emicida.

Para inspirar, essas histórias precisam existir. E serem contadas.