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História, política e cultura do esporte.

Richarlyson e a importância de dizer quem nós somos

Ex-volante é um exemplo de resiliência. Ele pode não acreditar, mas ao dizer que é bissexual, está dando um passo fundamental pela inclusão de LGBTs no futebol masculino

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Por João Abel
Atualização:

Hoje é um dia importante. Eu comecei a pesquisar e escrever sobre cultura LGBT+ e homofobia no futebol há cerca de cinco anos e uma das grandes dificuldades que encontrei… foi não encontrar muita coisa. Esse sempre foi um assunto tabu e invisibilizado. Como falar sobre a presença de gays e bissexuais no futebol masculino se eles simplesmente não existem?

A questão é que eles existem. E sempre existiram.

Richarlyson, em partida contra o Grêmio, pelo Brasileirão 2010 Foto: Roberto Vinícius/AE

Nesta sexta, 24, Richarlyson, ex-jogador de clubes como o São Paulo e o Atlético Mineiro, abriu o jogo e falou sobre sua bissexualidade aos jornalistas Joanna de Assis e William De Lucca, do podcast ‘Nos Armários dos Vestiários’, produzido pelo GE em parceria com a Feel The Match.

Já namorei homem. Já namorei mulher. E aí? Infelizmente, o mundo não está preparado para ter essa discussão e lidar com naturalidade com isso.

Richarlyson, ex-jogador

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Campeão brasileiro, da Libertadores e do Mundial, Richarlyson é o jogador brasileiro que mais sofreu com homofobia ao longo da carreira. O ex-presidente do São Paulo, Leco, chegou a dizer que integrantes das organizadas tricolores queriam matá-lo. Um grupo de torcedores do Palmeiras protestou quando o clube cogitou sua contratação. Durante toda a carreira, o volante foi alvo de ‘piadas’ em programas esportivos.

Há 15 anos, o episódio mais marcante da enxurrada de preconceito. Foi em 2007, quando José Cyrillo Jr, então dirigente do Palmeiras, insinuou que o jogador era gay em TV aberta, no programa Debate Bola, da Record. Richarlyson processou o cartola palmeirense e encontrou a face da homofobia também nos tribunais de Justiça. O juiz do caso, Manoel Maximiano, do TJ-SP, rejeitou a queixa do atleta são-paulino e escreveu na conclusão do processo absurdos como:

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“O que não se mostra razoável é a aceitação de homossexuais no futebol brasileiro porque prejudicariam a uniformidade, o equilíbrio, o ideal.”

Esse é só um trecho da homofóbica e criminosa decisão do magistrado, que depois foi afastado do caso. No ano seguinte, Richarlyson e Cyrillo chegaram a um acordo amigável, com o pagamento de dez cestas básicas pelo dirigente.

O estrago estava feito. Ricky seguiu perseguido e buscou sempre responder dentro de campo. “Eu não queria ser pautado por causa da minha sexualidade, de eu ser bissexual. Eu queria que as pessoas me vissem como espelho por tudo aquilo que conquistei dentro do meu trabalho”, afirmou ao podcast.

Ele sabia que precisava se esforçar muito mais que seus companheiros de time para que o assunto fosse sua performance e não sua suposta homossexualidade. O esforço, recompensado, levou-o até a seleção brasileira.

Agora em 2022, finalmente resolveu falar. Depois de se aposentar, como jogadores em outros países fizeram. Casos do alemão Thomas Hitzlsperger ou o inglês Thomas Beattie, por exemplo.

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No Galo, Richarlyson conquistou a Libertadores 2013 Foto: REUTERS/Washington Alves

Richarlyson é um exemplo de resiliência. Afirma que nunca se privou de nada. Mas tenho certeza que muitas pessoas, no futebol e fora dele, ainda hoje estão se privando. Você consegue imaginar o que é esconder uma parte importante da sua vida, ou fingir ser quem não é, por causa do seu ambiente de trabalho? Ou por causa da própria família? Do grupo de amigos?

Enquanto Richarlyson não acredita que sua declaração faça qualquer diferença, nós estamos aqui para dizer que ela é fundamental.

“Minha fala não vai mudar nada. Eu sou muito pequeno diante de todo esse cenário”, disse o ex-volante. Talvez ele não compreenda a importância da representatividade que carrega, mas ela existe. E vai inspirar outras pessoas. Jogadores em atividade, quem sabe.

Richarlyson em ação contra o Audax Italiano, no Morumbi, na Libertadores de 2007 Foto: REUTERS/Caetano Barreira

Entre avanços estruturais e o backlash conservador, muita coisa mudou na última década. As aspas de Richarlyson jamais viriam à tona e seriam publicadas de maneira tão natural dez anos atrás, por mais que ele afirme que sempre esteve pronto para falar sobre o assunto. O podcast da Joanna e do William não existiria. Nem mesmo esta coluna que você está lendo agora.

Pode acreditar, Ricky: o mundo está cada vez mais preparado para falar sobre isso. E quem não aceitar vai ficar pelo caminho.

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Por muito tempo, foram os outros que disseram onde os LGBTs deveriam estar ou não estar. No futebol, em especial. Uma visão construída pelo olhar de quem não sente na pele. A declaração de Richarlyson mostra a importância de escrever, documentar e construir a nossa própria história.

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