Uma das lembranças mais ternas da minha infância remonta às tardes que passava ouvindo discos em família. Meu pai ganhou um concurso de perguntas sobre música, numa rádio, cujo prêmio foi uma coleção de 500 vinis de 33 rpm. Além disso, ele tinha um belo acervo de bossa nova, jazz e soul music, responsável por minha educação auditiva. No meio de tanta música, havia um disco que era o favorito da minha mãe e logo se tornou o meu predileto também: "Eu sou o espetáculo", do comediante José de Vasconcelos, com a gravação de um show de humor que marcou época nos anos 50. Tenho o disco até hoje e continuo achando que aquele show foi um dos pontos altos da história da comédia. Vasconcelos estava infernal: imitava atores, narradores de futebol de diferentes nacionalidades e emplacava piadas divertidíssimas, como a do locutor gago, a do italiano que nunca havia assistido a uma partida de futebol e a dos velhinhos banguelas que não conseguiam apagar uma vela antes de dormir. Contei tudo isso para reverenciar o humorista que alegrou as tardes da minha infância, mas também para abordar o tema da renovação - crítico para o nosso futebol -, que o Zé abordou de um jeito muito gaiato. "Renovar, ou morrer", dizia o humorista, solene, na abertura. Para, depois de uma pausa, concluir: "Vamos renovar". Pois é. Ou a gente se reinventa todo dia, ou o mundo nos reinventa - não necessariamente de forma agradável. Lembra das pessoas que diziam que jamais teriam celular? Hoje elas têm. E aquele camarada que odiava a internet, lembra dele? Hoje está no Twitter. A vida moderna nos obriga a isso. Se até o século 19 era comum ver uma pessoa fazendo exatamente o que seu tataravô fazia, hoje se o meu tataravô fosse largado na Avenida Paulista talvez não sobrevivesse até chegar em casa. Infelizmente, em meio a tanta discussão sobre como serão os estádios e organização da Copa de 2014 no Brasil, estamos nos esquecendo do principal: teremos time? Os poucos campeões de 2002 ainda a serviço da seleção deverão se aposentar no máximo até a Copa da África, enquanto a geração seguinte, em que pese um Robinho aqui e um Nilmar ali, tem pouquíssimos fora de série. É hora de pensar na renovação. E não sei exatamente o que estamos fazendo nessa direção. Minha única certeza: os jovens talentos precisam jogar por aqui pelo menos duas temporadas antes de darem o salto no escuro da carreira no exterior. Epílogo necessário: depois de muitos anos ouvindo a voz de Vasconcelos no disco, fui vê-lo ao vivo num teatro do Bexiga. Era uma noite de quarta e o teatro estava vazio. Além de mim, apenas três espectadores. Ele não se abateu. Como nos velhos tempos, contou as piadas com enorme paixão. Rimos até cansar. Terminado o show, fui falar com ele, que comentou: "Hoje é meio fraco mesmo, mas amanhã melhora". De quebra,impressionado com o jovem que sabia de cor o seu disco, presenteou-me com um livro que havia escrito, sobre o poder da felicidade. Soube que ele costuma realizar espetáculos em asilos e hospitais, para ajudar quem sofre com pílulas de bom humor. Um ser humano maravilhoso. Antes de me despedir, perguntei se o velhinho podia me fazer um favor. Ele concordou e, por alguns instantes, conversou pelo celular com uma fã carioca, a autêntica proprietária do disco arranhado que eu passei a vida ouvindo: minha mãe. Naquele momento, o comediante me fez rir de um jeito muito especial. Foi um riso sereno, puro e realizado. O riso do menino de Madureira, que ouvia discos com os pais - e que havia finalmente entendido o verdadeiro sentido da passagem do tempo.
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