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O que se sabe até agora sobre alegação não confirmada de que o Hamas decapitou 40 bebês

Difusão de informações sobre evento começou com relato de soldados israelenses a jornalista de Tel Aviv, mas governo de Israel não apresentou provas

Por Clarissa Pacheco

No dia 7 de outubro de 2023, terrroristas do Hamas promoveram ataques a Israel, ultrapassando a barreira da Faixa de Gaza. Dentre os alvos estavam comunidades agrárias coletivas (os chamados kibutzim), onde moradores foram mortos, muitos deles a tiros. Três dias após o ataque, em 10 de outubro, jornalistas internacionais receberam autorização das Forças de Defesa de Israel (IDF) para visitar uma dessas localidades, o Kibutz Kfar Aza.

Lá, uma jornalista local chamada Nicole Zedek, do canal i24 News, sediado em Tel Aviv, disse ao vivo ter conversado com um comandante do Exército de Israel que disse ter encontrado bebês decapitados pelo Hamas. O militar citou a existência de “cerca de 40 bebês mortos no Kibutz, alguns deles decapitados”.

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A história correu o mundo e foi publicada em diversos veículos de imprensa. Alguns deles, como o Jerusalem Post, disseram ter visto fotografias que comprovavam os relatos, mas a maioria atribuiu a informação a soldados israelenses. Até o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, disse ter visto imagens de bebês decapitados – o que posteriormente foi desmentido pela Casa Branca. O Hamas negou ter decapitado crianças e agredido mulheres.

Mais tarde, as Forças de Defesa disseram que não podiam confirmar o episódio; um porta-voz afirmou que não investigariam o caso em respeito aos mortos. O governo de Israel chegou a divulgar imagens de crianças mortas com a acusação de o crime teria sido cometido pelo Hamas, mas as fotografias não mostram corpos decapitados.

O Estadão Verifica preparou um guia cronológico explicando o que se sabe, até agora, sobre a alegação até o momento não confirmada de que 40 bebês teriam sido decapitados pelo Hamas.

Sábado, 7 de outubro de 2023

O ataque

O grupo extremista Hamas bombardeia Israel, invade uma festa rave que acontecia perto da Faixa de Gaza, mata civis no evento e invade kibutzim (plural de kibutz) e bunkers onde pessoas se abrigavam. Uma das comunidades invadidas é o Kibutz Kfar Aza, onde famílias inteiras foram assassinadas.

Soldados israelenses próximos de corpos de pessoas mortas no Kibutz Kfar Aza, durante visita da imprensa ao local em 10 de outubro de 2023. (AP Photo/Ohad Zwigenberg) 

Terça-feira, 10 de outubro de 2023

Os relatos

As Forças de Defesa de Israel permitem a entrada de jornalistas estrangeiros no Kibutz Kfar Aza. A primeira notícia sobre a suposta decapitação de bebês naquele local partiu da jornalista Nicole Zedek, que difundiu uma reportagem no canal i24 News, afirmando que soldados israelenses encontraram no local os corpos de cerca de 40 bebês e crianças pequenas mortas, algumas delas com as cabeças cortadas.

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Na reportagem, Nicole Zedek não disse ter visto fotos ou corpos de bebês decapitados, e sim atribuiu a alegação a militares. No mesmo dia, outras emissoras, desta vez internacionais, falaram sobre o assunto. A editora da TV norte-americana CBS Norah O’Donnell publicou no X (ex-Twitter) na tarde de 10 de outubro que a emissora “soube que equipes de recuperação de corpos de Israel encontraram bebês e crianças decapitadas” em um kibutz no sul de Israel.

O repórter Shashank Joshi, que escreve para o britânico The Times, publicou uma reportagem sobre o massacre no Kibutz Kfar Aza, no sul de Israel, na qual escreveu sobre “bebês com as gargantas cortadas”. Mas o relato foi atribuído a soldados. “A cada poucos minutos, os soldados quebravam o silêncio para anunciar que mais pessoas mortas haviam sido descobertas. Alguns disseram que até 40 cadáveres de bebês foram encontrados entre famílias inteiras que foram mortas a tiros enquanto dormiam.”

O relato no X feito pelo repórter Charlie Peters, do canal britânico GB News, não deixa claro se ele viu imagens ou se baseou em relatos de soldados. Escreveu que fontes oficiais haviam mostrado a ele no Kibutz de Kfar Aza: “Inocentes decapitados e queimados. Bebês assassinados”.

A editora de Internacional da emissora francesa LCI Margot Haddad foi mais incisiva e disse ter confirmado a informação de que bebês e crianças menores de dois anos foram decapitados pelo Hamas no Kibutz Kfar Aza. Segundo ela, as fontes eram o Exército de Israel, o serviço interno de inteligência e imagens que ela mesma conseguiu verificar, além de relatos de “jornalistas corajosos da imprensa estrangeira que puderam ver/concordaram em ver com os seus próprios olhos os corpos em Kfar Aza”.

Um passo atrás

No mesmo dia em que reportagens estouraram na imprensa relatando o massacre de 40 bebês decapitados, o porta-voz das Forças de Defesa de Israel disse à Agência Anadolu que havia ouvido no noticiário os relatos sobre os bebês decapitados, mas ainda não havia confirmação sobre o fato.

O Estadão também mencionou o pronunciamento das IDF.

Quarta-feira, 11 de outubro de 2023:

O início dos questionamentos

Após a declaração feita inicialmente à jornalista do i24News e diante do reconhecimento das IDF de que não era possível confirmar o relato, Israel passou a ser questionado. Já na quarta-feira, um porta das IDF, major Nir Dinar, disse ao jornal Business Insider que não investigariam nem buscariam mais evidências sobre a decapitação de bebês pelo Hamas no Kibutz Kfar Aza porque isso era “desrespeitoso com os mortos”.

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Outras autoridades de Israel mantiveram a alegação da existência bebês decapitados. Pouco antes da publicação do Insider, Tal Heinrich, porta-voz do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, disse à CNN que crianças pequenas foram encontradas com as cabeças decapitadas no Sul de Israel após o ataque do Hamas.

No mesmo dia, um porta-voz das IDF, desta vez Jonathan Conricus, disse em um vídeo no X que as IDF tinham “relativa confiança” nas alegações sobre as decapitações.

Na mesma data, o Hamas usou seu site oficial e o canal no Telegram para negar que tivesse decapitado crianças e agredido mulheres. Segundo o porta-voz do Hamas, Izzat al-Risheq, havia mentiras ”sendo espalhadas sobre membros do grupo decapitarem crianças e atacarem mulheres sem nenhuma evidência”. E acrescentou: “Condenamos veementemente as alegações inventadas e infundadas promovidas em uma tentativa de encobrir os massacres, crimes e genocídio cometidos em Gaza”.

Àquela altura, o caso já tinha inflamado discursos nas redes sociais. A história foi mencionada como “propaganda de guerra” pelo El País.

Quinta-feira, 12 de outubro de 2023:

O testemunho, depois desmentido, de Joe Biden

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, disse em uma reunião com líderes da comunidade judaica na Casa Branca ter visto evidências de que o Hamas decapitou crianças israelenses: “Nunca pensei que veria, e confirmaria, fotos de terroristas decapitando crianças”, noticiou o site Wion.

Mas o presidente acabou desmentido, horas depois, pela própria Casa Branca, que afirmou ao jornal The Washington Post que nem Biden, nem autoridades dos Estados Unidos tinham visto fotos ou confirmado relatos de modo independente, e que provavelmente o presidente havia se baseado em informações do porta-voz do primeiro ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, e em relatos da imprensa israelense. Foi o que publicou a rede de televisão Al Jazeera.

No mesmo dia, o gabinete do primeiro-ministro de Israel publicou fotos de bebês mortos e queimados no X e atribuiu os crimes ao Hamas. Nas imagens não foi possível constatar a existência de bebês decapitados. Netanyahu falou sobre o Hamas ter feito decapitações em uma aparição ao lado do secretário de Estado norte-americano, Anthony Blinken, mas não especificou se eram crianças.

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Mais um recuo

Ainda no dia 12 de outubro, o governo de Israel disse à CNN que não podia confirmar a alegação específica de que militantes do Hamas tinham decapitado crianças: “Houve casos de militantes do Hamas que cometeram decapitações e outras atrocidades ao estilo do ISIS [Estado Islâmico]. No entanto, não podemos confirmar se as vítimas eram homens ou mulheres, soldados ou civis, adultos ou crianças”, disse uma autoridade.

À agência EFE, o coronel da reserva israelense Golan Vach, chefe da Unidade de Resgate Nacional no Comando da Frente Interna do Exército, afirmou que ele próprio “encontrou um bebê com a cabeça decepada” entre as mais de 100 pessoas mortas, mas isso ocorreu no Kibutz Beeri, e não no Kfar Aza. Ele acrescentou que membros de sua equipe encontraram mais crianças decapitadas.

Fotografias verificadas por jornal israelense

A primeira confirmação na imprensa de que bebês teriam mesmo sido decapitados no Kibutz Kfar Aza veio no dia 12 de outubro. Às 10h29, o jornal The Jerusalem Post publicou no X que podia confirmar, com base em fotografias verificadas dos corpos, que relatos sobre bebês queimados e decapitados no ataque do Hamas ao Kibutz Kfar Azza estavam corretos. O jornal não publicou imagens, nem disse como teve acesso a elas.

Segunda-feira, 16 de outubro de 2023:

Legenda editada

Na última segunda-feira, 16, a CNN editou a legenda de uma publicação feita no Instagram com um relato do editor Nic Robertson. No vídeo, feito no Kibutz Kfar Azza e postado originalmente na conta da emissora no dia 10 de outubro, Robertson fala sobre a parte triste da recuperação do controle sobre o kibutz, que é encontrar a devastação, além de corpos de homens, mulheres, adultos e crianças, alguns decapitados.

Não é possível identificar o que a CNN havia escrito na legenda original, mas o novo texto diz que “Nic descreve o que as IDF lhe disseram que encontraram no local”. Ou seja, ele próprio não viu corpos decapitados, e sim ouviu relatos de soldados israelenses. Em uma reportagem no site da emissora, o canal afirmou não ter visto evidência de crianças decapitadas em Kfar Aza ou em postagens de redes sociais.

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