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Extinção de um dos empregos mais arriscados do mundo ameaça o turismo no Everest

‘Não vejo futuro’, dizem guias sherpas mais antigos, que, por tradição, devem passar a profissão de pai para filho

Por Bhadra Sharma e Mujib Mashal
Atualização:

Foi um desses momentos em que os filhos são levados para o trabalho. A intenção do pai, porém, não era inspirá-los. Kami Rita Sherpa, o renomado guia de alpinismo do Nepal recordista em escaladas ao topo do Monte Everest, levou seu filho de 24 anos, Lakpa Tenzing, ao pé da montanha magnífica no fim de 2021 e disse-lhe que esse era o ponto mais próximo que ele deveria chegar do cume. “É muito difícil, veja minha situação”, recordou-se Sherpa de ter dito ao seu filho na ocasião. “Não vejo futuro.”

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Este sentimento é cada vez mais comum em um ofício que, com frequência, foi transmitido de geração em geração, conforme o cálculo entre risco e benefício leva cada vez mais famílias de sherpas a abandonar a montanha.

Os perigos de guiar alpinistas até o pico mais alto do mundo, com a sempre presente possibilidade de quedas, avalanches e clima extremo, são evidentes. Quase um terço das 315 mortes registradas no Everest ao longo do século recente foi de guias sherpa, de acordo com o Banco de Dados Himalaio, um organismo que registra e mantém dados a respeito de montanhismo.

No mês passado, três sherpas morreram ao ser atingidos por uma coluna de gelo em um glaciar próximo ao acampamento-base do Everest.

Acampamento base do Monte Everest; sherpas guiam alpinistas até o topo da maior montanha do mundo  Foto: Pasang Rinzee Sherpa/ Reuters

Riscos e má remuneração

Os ganhos também são modestos para todos, exceto aqueles que conseguem ascender a um clube de elite dos guias, depois de passar anos em escaladas extenuantes para provar seu talento. Sherpas em início de carreira ganham cerca de US$ 4 mil, menos gastos com seus próprios equipamentos, pela expedição ao Everest que podem realizar uma vez por temporada, o que compõe a maior parte de sua renda anual.

Mas o que está fazendo os sherpas deixarem a indústria e a desencorajar seus filhos de assumir seu lugar é a exígua seguridade social na atividade. Se um guia fica incapacitado ou acaba morrendo, a rede de amparo para sua família é escassa – os pagamentos das seguradoras são limitados, e um fundo de previdência prometido pelo governo para os guias sherpa nunca se materializou.

Alguns dos que abandonam a montanha migram para o exterior, um caminho comum tanto para melhores perspectivas de emprego em um dos países mais pobres da Ásia. Outros trabalham como podem, em qualquer coisa, dentro do Nepal.

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Temor pelo futuro dos filhos

“Não vou aconselhar meus filhos, criados em meio a dificuldades, a ir para as montanhas e seguir no mesmo trabalho arriscado de guia de alpinismo”, afirmou Kaji Sherpa, que deixou o emprego em 2016, depois de oito anos como guia sherpa, e virou guarda de segurança em um projeto local de geração hidrelétrica.

Sherpa sobreviveu a um dos desastres mais mortíferos no Everest, em 2014, quando uma avalanche matou 16 sherpas. Muitos guias da montanha esperaram que a tragédia ocasionasse um acerto de contas na indústria, promovendo novas medidas de segurança e ofertas de seguros de vida.

Depois do desastre, os sherpas ameaçaram cancelar as expedições ao Everest, que trazem milhões de dólares para o Nepal todos anos. O governo anunciou, então, o fundo de previdência social para os guias de alpinismo, mas, de acordo com autoridades do governo e líderes de expedições, ele nunca foi ativado.

Kami Rita Sherpa desencorajou os filhos a seguir sua profissão Foto: Saumya Khandelwal/The New York Times

Exploração laboral

Mudanças introduzidas por operadores de expedições também trouxeram pouca segurança. Ainda que as apólices de seguro tenham melhorado, as seguradoras pagam às famílias dos sherpas apenas cerca de US$ 11 mil em caso de morte e US$ 3 mil por ferimentos. Os seguros também preveem US$ 5 mil para cobrir despesas de uma operação de resgate no caso de um acidente.

Para operar expedições nas montanhas com mais de 6 mil metros de altitude no Nepal – o alpinismo é permitido em 414 delas – o setor precisa de pelo menos 4 mil sherpas aclimatados a grandes altitudes, de acordo com Tashi Lakpa Sherpa, fundador da empresa de montanhismo 14 Peaks Expedition. Adicionalmente, dezenas de milhares de carregadores são necessários para levar bagagens e equipamentos para os acampamentos-base.

Não há dados precisos a respeito de tendências de emprego entre os sherpas. Mas há sinais de tensão tanto entre os guias sherpa quanto entre trabalhadores de apoio.

Um dos sherpas mais famosos do Nepal, Kami Rita Sherpa coleciona recordes no Everest  Foto: Saumya Khandelwal/The New York Times

Escassez logística

Em um esforço para criar mais oportunidades de emprego nas montanhas, o governo nepalês emitiu recentemente uma regra exigindo que equipamento seja levado por carregadores e iaques de Syangboche, onde fica o aeroporto mais próximo do Everest, a 3.799 metros de altitude, para o acampamento-base, a 5.334 metros de altitude.

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Mas o governo foi forçado a reverter a decisão depois de operadores de expedições reclamarem que não havia carregadores nem iaques suficientes. Em março, semanas antes da temporada começar, as autoridades permitiram que helicópteros pudessem transportar as cargas para o acampamento-base.

Conforme os sherpas abandonam as montanhas, os organizadores de expedições já percebem padrões. Guias sherpa, famosos por sua resistência em grandes altitudes e climas extremos, são majoritariamente de comunidades étnicas que residem próximo às montanhas do Nepal.

O número de sherpas da região de Kumbu, vistos como pioneiros no montanhismo, está diminuindo. Sherpas de Rolwaling, que começaram depois, estão começando a mudar de estilo de vida. E sherpas das regiões de Kanchenjunga e Makalu estão preenchendo o vácuo deixado.

Montanhista norueguesa Kristin Harila chega ao Nepal para escalar o Everest ao lado de um namorado e do sherpa Tenjen Foto: Navesh Chitrakar/Reuters

Emigração em massa

Alguns dos que emigram buscam qualificação e emprego na capital, Katmandu, ou no exterior. Milhares se mudaram para EUA, Europa e Austrália. Alguns encontraram trabalho em alpinismo, enquanto outros fazem bicos ou outros trabalhos.

”Eles não retornam para escalar as montanhas, nem mesmo para seus vilarejos”, afirmou Dawa Steven Sherpa, um organizador de expedições. “Então não encontramos muitos sherpas em Kumbu. Muitos deles estão no Colorado, em Nova York, na Áustria, na Suíça.”

Entre os que deixaram as montanhas para trás está Apa Sherpa, um guia famoso, que detinha o recorde de mais subidas ao topo do Everest até Kami Rita Sherpa quebrá-lo, em 2018. Apa Sherpa, de 63 anos, se mudou para Utah, em 2006, onde se estabeleceu com sua família.

“Tudo pela educação”, afirmou Tenzing Sherpa, filho mais velho de Apa Sherpa e contador de uma empresa de biotecnologia. “Meu pai e minha mãe não tiveram acesso a educação, então eles trabalhavam duro nas montanhas.”

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Para Kami Rita Sherpa, a decisão de desencorajar seu filho de segui-lo no Everest resultou de sua própria dura jornada. Apesar de pertencer a uma elite sherpa – ele escalou o Everest 26 vezes –, seus ganhos mal bastam para as despesas de sua família de quatro integrantes. Eles vivem em um apartamento alugado, em Katmandu.

Visão de um dos acampamentos do Everest: superlotação tem tornado escalada mais perigosa para sherpas e montanhistas Foto: AP / AP

Um medo constante

Toda primavera, quando Sherpa lidera sua expedição seguinte ao Everest, sua família fica apavorada. “Eu rezo dia e noite e acendo velas na estupa de Boudhanath para que ele fique bem quando está longe de casa”, afirmou sua mulher, Lakpa Jangmu, referindo-se a um santuário budista em Katmandu. “O suspiro de alívio só chega quando vejo ele atravessando aquela porta.”

Sherpa afirmou que continuará a trabalhar na montanha até o fim de sua carreira. “Se eu lidero uma equipe de expedição, vários sherpas conseguem emprego de carregador”, afirmou ele, acrescentando que isso traz milhares de dólares ao Estado. “Eu continuarei trabalhando mais alguns anos.”

Mas ele e sua mulher garantiram outros caminhos para seus filhos. Sua filha, Pasang, de 21 anos, está no semestre final de um programa de bacharelado em tecnologia da informação. Lakpa, seu filho de 24 anos, está se formando em gestão de turismo.

”Conheço o legado dele”, afirmou Lakpa a respeito de seu pai. “Pretendo ser fotógrafo de paisagens naturais– isso vai me manter mais próximo da montanha, mas a uma distância segura.” /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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