Tirinha do genial, sarcástico e ácido - e delirante - cartunista argentino Gustavo Sala, que ilustra o suposto rendez-vous Borges/Jagger. Nela, o roqueiro encontra casualmente Borges no hall de um hotel e diz: "Mestre! Que maravilha encontra-lo aqui. Li toda sua obra e o admire profundamente... Sou Mick Jagger, dos Rolling Stones". Borges responde sorrindo: "Adoro os Rolling Stones! Principalmente ao canção Yellow Submarine". Jagger fica fulo da vida e retruca: "Yellow Submarine é dos Beatles. No fim das contas, você, Bioy Casares, é meio panaca". Agora é Borges que fica furioso com a confusão com Bioy e responde: "Eu sou Borges! Ta de gozação, cabeça de cacete?". Jagger se afasta dizendo "Velho forro (gíria chula para preservativo, mas neste caso com equivalência para "imbecil")!". Borges resmunga: "Careta!". O blog do cartunista, aqui.
Caras e caros,
Estava pendente há semanas a última postagem da "Semana borgiana de Os Hermanos" (para recordar os 25 anos do falecimento do escritor Jorge Luis Borges). Mas, por causa da cobertura da cúpula do Mercosul em Assunção, da crise do River Plate, do lançamento oficial da candidatura de Cristina Kirchner à reeleição presidencial, e do início da Copa América (acompanhada de forte conteúdo político), o epílogo da semana borgiana foi adiada e novamente adiada.
Pelo menos isso é o que Maria Kodama, ex-aluna e ex-secretária do escritor, que casou-se com ele meses antes da morte de Borges em junho de 1986, me disse em uma entrevista no final de 1995, poucos meses depois que desembarquei em Buenos Aires.
Anos depois Kodama explicou a um jornal europeu que Borges preferia Pink Floyd e que sabia os diálogos de "The Wall" de memória. "Ele gostava muito de sua música, pois dizia que tinha uma força especial e que o fazia sentir-se bem". Segundo Kodama, nos aniversários de Borges não cantavam o tradicional "parabéns pra você", mas sim "The Wall".
O assunto roqueiro ficou fora da agenda de Kodama até poucos anos atrás, quando ela voltou a falar sobre a conexão O Aleph-Satisfaction.
Desta vez, ela ampliou a versão do rendez-vous entre a eminência da literatura e o bardo do rock, afirmando que ela e o escritor estavam sentados no hall de um hotel na Europa quando entrou Mick Jagger.
O roqueiro vê Borges, e deleitado pelo encontro, ajoelha-se na frente de Borges e diz: "mestre, que maravilha encontrá-lo, o senhor não sabe quando o admiro. Li toda sua obra".
Borges, que já estava cego, pergunta: "e o sr, quem é?"
O roqueiro responde: "Mick Jagger".
Borges exclama: "Mick Jagger! Um dos Rolling Stones".
Segundo Kodama, a conversa continuou assim:
- Mas como, mestre, o sr, me conhece?
- Sim, sim, o conheço através de Maria, que permitiu que eu o descobrisse.
A afirmação de Kodama sempre me chamou a atenção. Mais ainda depois da entrevista que fiz com ela após ter desembarcado em Buenos Aires em 1995. E mais ainda depois de ficar sabendo as peculiares circunstâncias de seu casamento feito por um cônsul paraguaio ... que não era cônsul nem paraguaio (para mais detalhes, ver a anterior postagem sobre Borges, aqui). Ao longo destes anos, em todas as ocasiões nas quais entrevistava amigos de Borges ou seus estudiosos, perguntava se esta história tinha sentido.
A afirmação de Kodama sempre me chamou a atenção. Mais ainda depois da entrevista que fiz com ela após ter desembarcado em Buenos Aires em 1995. E mais ainda depois de ficar sabendo as peculiares circunstâncias de seu casamento feito por um cônsul paraguaio ... que não era cônsul nem paraguaio (para mais detalhes, ver a anterior postagem sobre Borges, aqui). Ao longo destes anos, em todas as ocasiões nas quais entrevistava amigos de Borges ou seus estudiosos, perguntava se esta história tinha sentido.
O primeiro foi seu amigo e escritor Adolfo Bioy Casares, que riu quando lhe perguntei se Borges apreciava o rock. Bioy me disse que a tinha a sensação de que Kodama estava tentando fazer o escritor parecer "juvenil".
"Ele não ouvia rock, posso garantir", afirmou.
Anos depois, ao terminar uma entrevista com Fani Uveda, empregada da família Borges durante mais de quatro décadas, também fiz a pergunta sobre Jagger e seu gênero musical.
Fani, que tinha poucos anos de vida pela frente, levantou as sobrancelhas, surpreendida pela pergunta. "Não, o senhor Borges não ouvia rock. Nunca", disse categórica. "Ele nem sabia quais eram os cantores de rock", arrematou.
Há poucas semanas entrevistei Maria Esther Vázquez, biógrafa e amiga de Borges, fiz a pergunta clássica que fiz nestes anos todos a amigos e conhecidos de Borges. A resposta foi: "Besteira".
"Borges não gostava de rock. Mas gostava dos blues, dos tristes spirituals. E além disso, Borges não tinha ouvido musical algum. Cantava o hino nacional com a mesma melodia que podia cantar o tango El Pollito (O Franguinho)".
O Tango "El pollito", aqui.
E também aqui.
E aqui.
E para encerrar este galináceo tango, na versão da Orquestra Típica Budapest, aqui.
Segundo Vázquez, "Borges gostava das milongas (versão mais rápida do tango, menos sofisticadas). E gostava dos primeiros tangos, sem letras. No entanto, uma vez, nos EUA, estávamos em um auditório quando tocaram o tango "Nostalgias". Subitamente, ouvi alguém chorando. Olhei para o lado, e vi que era Borges. Emocionara-se pela música, que a estava ouvindo tão longe de sua terra".
Alejandro Vaccaro, presidente da Sociedade Argentina de Escritores (Sade), ri quando ouve a consulta sobre Borges-Jagger: "É um disparate. As pessoas tem o direito de dizer qualquer coisa que quiserem. Mas essa história dos Rolling Stones é um disparate".
"Além disso, Borges não tinha sequer rádio em sua casa, nem TV. E nem um toca-fita ou tocadisco", explica Vaccaro. "Parece que uma vez, na Europa, os dois se viram em um hotel. Jagger o cumprimentou. Ele era um admirador de Borges. Jagger havia participado de um filme, Performance, no qual lia um trecho de um conto de Borges. Talvez Borges, por cortesia, disse que gostava dele. Mas só isso. Borges, com certeza, não ouvia os Rolling Stones".
Filme com Robert Redford e Jane Fonda, "Descalços no parque", tem um quê do não-borgiano poema de Nadine Stair/Strain
INSTANTES
Outro mito sobre Borges é suposta poesia "Instantes", que tece uma longa lista de atividades que a pessoa que o escreve diz que gostaria de ter feito antes de morrer. Nesse poema, em tom de "auto-ajuda", a pessoa indica que possui 85 anos e que desejaria ter comido mais sorvete, caminhar sob a chuva, etc. A confusão começou imediatamente após a morte do escritor, quando foi divulgado em todo o mundo um poema que celeremente pipocou em posters em quartos de repúblicas estudantis, cartões de parabéns, marcadores de livros e nos cadernos de colegiais.
Muitos leitores consideraram automaticamente que este era um real poema de Borges, mais ainda porque o autor cita a idade de 85 anos no texto (Borges morreu aos 86, em 1986). Isto é, como se fosse um texto que Borges teria preparado pouco antes de morrer.
Talvez tenha sido o poema "de Borges" mais conhecido em todo o planeta. Mas, na realidade era da poetisa Nadine Stair, de Louisville, Kentucky, EUA. Essa peça foi publicada em 1978.
Bom, o problema é que não existe nenhuma Nadine Stair...
Existia sim, uma Nadine Strain na mesma cidade.
E, quando o texto de Stair/Strain foi publicado, ela tinha 85 anos, a idade citada no poema.
Este é o poema da polêmica, em espanhol:
Si pudiera vivir nuevamente mi vida. En la próxima trataría de cometer más errores. No intentaría ser tan perfecto, me relajaría más. Sería más tonto de lo que he sido, de hecho tomaría muy pocas cosas con seriedad. Sería menos higiénico. Correría más riesgos, haría más viajes, contemplaría más atardeceres, subiría más montañas, nadaría más ríos. Iría a más lugares adonde nunca he ido, comería más helados y menos habas, tendría más problemas reales y menos imaginarios. Yo fui una de esas personas que vivió sensata y prolíficamente cada minuto de su vida; claro que tuve momentos de alegría. Pero si pudiera volver atrás trataría de tener solamente buenos momentos. Por si no lo saben, de eso está hecha la vida, sólo de momentos; no te pierdas el ahora. Yo era uno de esos que nunca iban a ninguna parte sin termómetro, una bolsa de agua caliente, un paraguas y un paracaídas; Si pudiera volver a vivir, viajaría más liviano. Si pudiera volver a vivir comenzaría a andar descalzo a principios de la primavera y seguiría así hasta concluir el otoño. Daría más vueltas en calesita, contemplaría más amaneceres y jugaría con más niños, si tuviera otra vez la vida por delante. Pero ya tengo 85 años y sé que me estoy muriendo.
O suposto poema borgiano espalhou-se pelo mundo, levando o próprio integrante do U-2, o irlandês Bono, a falar sobre o poema durante o programa Teleton, na TV mexicana em 2005, citando Borges como o autor real. Pior: disse que Borges era um escritor chileno....
A própria escritora mexicana Elena Poniatowska, uma das mais respeitadas intelectuais de seu país, também caiu na armadilha de Stair/Strain (mas ela sabia que Borges era argentino).
Caricatura do cartunista (e poeta nas horas vagas) americano Don Herold, autor da - eventual - primeira versão do polêmico "Instantes"
E, quando a coisa parece saborosa...a história fica mais interessante! Acontece que o caricaturista Don Herold havia escrito no distante 1953 o poema "If I had my life to live over", publicado no Reader's Digest de outubro daquele ano, que é, praticamente, a base do poema de Stair/Strain-Borges:
I had my life to live over, I would try to make more mistakes. I would relax. I would be sillier than I have been this trip. I know of very few things that I would take seriously. I would be less hygienic. I would go more places. I would climb more mountains and swim more rivers. I would eat more ice cream and less bran.
Mais detalhes sobre Stair/Strain e Herold, aqui.
E aqui.
EPITÁFIO
E agora, para encerrar, lhes deixo um artigo do amigo e escritor colombiano Hector Abad Faciolince, que trata de uns poemas supostamente atribuídos a Borges... mas que seriam, na realidade, poemas de Borges. De Jorge Luis Borges, mesmo.
Desta forma, estes poemas fazem o caminho contrário de Nadine Stair/Strain, que foram encarados primeiro como textos verdadeiramente borgianos para serem posteriormente desmascarados.
Neste caso da pesquisa feita por Faciolince os poemas foram inicialmente considerados de Borges e posteriormente foram tachados de falsos... mas, anos depois, o escritor colombiano e outros intelectuais chegaram à conclusão que eram da pena do autor de "O Aleph".
O poema, intitulado "Epitáfio", era este:
Ya somos el olvido que seremos.
El polvo elemental que nos ignora
y que fue el rojo Adán y que es ahora
todos los hombres, y que no veremos.
Ya somos en la tumba las dos fechas
del principio y el término. La caja,
la obscena corrupción y la mortaja,
los ritos de la muerte, y las endechas.
No soy el insensato que se aferra
al mágico sonido de su nombre.
Pienso, con esperanza, en aquel hombre
que no sabrá que fui sobre la tierra.
Bajo el indiferente azul del cielo
esta meditación es un consuelo.
Faciolince o encontrou no bolso de seu pai, um médico sanitarista que trabalhava com políticas públicas, assassinado em um atentado na violenta Medellín em agosto de 1987. O escritor colocou as linhas do poema achado no bolso e atribuído a Borges na lápide de seu pai.
Mais detalhes, aqui.
e aqui.
E mais, aqui.
EPÍLOGO
Na conversa com Vaccaro, o biógrafo e colecionador de Borges me disse que está trabalhando em outro projeto - "Borges, textos secretos e as falsas atribuições" - que reunirá, além de pequenas obras quase desconhecidas (ou esquecidas), os "falsos Borges". No caso da pesquisa de Faciolince, Vaccaro considera que é uma investigação séria e que os poemas são verdadeiros.
"Durante muitos anos juntei textos pouco conhecidos de Borges, como o famoso folheto sobre a leite coalhada que fez com Bioy Casares", disse. No entanto, ainda não há prazo para que essa obre chegue às livrarias: "não trabalho com datas nem pressa".
Em 2009 "Os Hermanos" recebeu o prêmio de melhor blog do Estadão (prêmio compartilhado com o blogueiro Gustavo Chacra).
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