Opinião | As coisas mais assustadoras dos desvarios de Trump sobre Gaza

Plano de deslocar palestinos ameaça desestabilizar aliados dos Estados Unidos no Oriente Médio e fortalecer um do seus principais adversários, o Irã

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Por Thomas Friedman (The New York Times)

O plano do presidente Donald Trump de assumir Gaza, remover seus 2 milhões de palestinos e transformar a faixa costeira desértica num tipo de Club Med prova apenas uma coisa: como é curta a distância entre o pensamento fora da caixa e o pensamento desvairado.

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Posso dizer com segurança que a proposta de Trump é a iniciativa de “paz” para o Oriente Médio mais absurda e perigosa jamais apresentada por um presidente americano.

Ainda assim, não tenho certeza do que é mais assustador: a proposta de Trump para Gaza, que parece mudar a cada dia, ou a velocidade com que seus conselheiros e autoridades do gabinete — quase nenhum informado sobre os planos com antecedência — balançaram a cabeça em aprovação à ideia, como uma coleção de bonecos bobbleheads.

Presidente americano, Donald Trump, sugeriu deslocar palestinos da Faixa de Gaza.  Foto: Andrew Caballero-reynolds/AFP

Prestem atenção, senhoras e senhores: essa proposta não trata apenas do Oriente Médio. É também um microcosmo do problema que enfrentamos neste momento enquanto país. Em seu primeiro mandato, o presidente Trump esteve cercado por mitigadores: conselheiros, secretários de gabinete e generais que muitas vezes evitaram e contiveram seus piores impulsos.

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Agora Trump está cercado somente por amplificadores: conselheiros, secretários de gabinete, senadores e membros da Câmara que vivem com medo de sua ira ou de ser atacados por multidões online atiçadas por seu fiscal, Elon Musk, caso saiam da linha.

Essa combinação de Trump sem amarras, Musk sem restrições e grande parte do governo e do establishment empresarial vivendo com medo de ser tuitado por qualquer um dos dois é uma receita para o caos, domesticamente e no exterior. Trump opera mais como o Poderoso Chefão do que como o presidente: “Belo pequeno território que vocês têm aí (Groenlândia, Panamá, Gaza, Jordânia, Egito). Seria uma pena se algo ruim acontecesse por lá…”.

Isso pode funcionar nos filmes, mas na vida real, se o governo Trump realmente tentar forçar a Jordânia e o Egito ou qualquer outro Estado árabe a aceitar os palestinos que vivem em Gaza — e fazer o Exército israelense prendê-los e deslocá-los, já que Trump disse que a transferência não envolveria tropas dos EUA e não custaria nenhum centavo aos contribuintes americanos — isso desestabilizará o equilíbrio demográfico na Jordânia entre os habitantes da Cisjordânia e os palestinos, desestabilizará o Egito e desestabilizará Israel. Por mais que os israelenses odeiem o Hamas, estou certo de que muitos soldados, fora os de extrema direita, se recusarão a fazer parte de qualquer operação que possa ser comparada à captura e transferência de judeus de suas casas durante a 2ª Guerra.

Conforme opinou o jornal israelense Haaretz: “Não há soluções mágicas capazes de dissolver simplesmente o conflito. A audácia de apresentar tal solução — que ecoa termos como transferência, limpeza étnica e outros crimes de guerra — é um insulto tanto aos palestinos quanto aos israelenses”.

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Trump também criará uma reação contra embaixadas e interesses dos Estados Unidos em todo o mundo árabe muçulmano, com muitos muçulmanos indo às ruas na Europa, no Oriente Médio e na Ásia se manifestar contra palestinos sendo forçados a deixar suas terras em nome de Trump, criando um resort litorâneo na Faixa de Gaza — que Trump disse que “possuirá” e para onde os palestinos não teriam direito de retornar.

Isso seria o maior presente que Trump poderia dar para o Irã se reerguer no Oriente Médio e envergonharia todos os regimes sunitas pró-EUA. Empresas americanas como McDonalds e Starbucks, que já enfrentaram boicotes em razão do armamento fornecido pelos EUA a Israel na guerra de Gaza, seriam prejudicadas ainda mais duramente.

Trump tem alguma razão? Bem, sim. Ele está certo ao afirmar que o Hamas é uma organização enlouquecida e perversa, que, ao massacrar de cerca de 1,2 mil pessoas em 7 de outubro de 2023 e sequestrar de cerca de 250, desencadeou o impiedoso ataque israelense contra o Hamas, escondido no subsolo em Gaza, sem nenhum respeito aos civis de Gaza. O Hamas transformou seus vizinhos palestinos em objetos de sacrifício humano com intenção de deslegitimar Israel em todo o mundo. Para muitos jovens que só recebem notícias por meio de vídeos no TikTok, funcionou, embora a estratégia não pudesse ter sido mais cínica.

Trump também está certo ao afirmar que, como resultado, Gaza transformou-se em um inferno. E também está certo ao afirmar que o problema dos refugiados palestinos foi mantido vivo durante muito tempo por cínicos, no mundo árabe e em Israel, e por líderes palestinos incompetentes.

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Sair do 7 de Outubro para qualquer tipo de processo de paz não será fácil, mas a ideia de que tudo já foi tentado e a única opção que resta é limpeza étnica está errada — mas é isso que a direita israelense e o Hamas querem que todos acreditem.

Palestinos passam por pilha de lixo na Faixa de Gaza, onde a provocou interrupções em serviços básicos como a limpeza urbana.  Foto: Jehad Alshrafi/Associated Press

Um dos maiores problemas com a atual equipe de Trump é que todo seu foco sobre o Oriente Médio advém das lentes de extremistas de direita israelenses e cristãos evangélicos. Tudo o que o pessoal de Trump conhece sobre o mundo árabe vem da comunidade de investimento no Golfo Pérsico. Portanto, eles são completamente, totalmente loucos pelo primeiro-ministro Binyamin Netanyahu de Israel.

Por exemplo, o secretário de Estado Marco Rubio continua dizendo aos líderes árabes: “O Hamas nunca mais poderá governar Gaza nem ameaçar Israel”. Mas Rubio parece não ter a mínima ideia de que Netanyahu foi o responsável por permitir que o Catar desse ao Hamas centenas de milhões de dólares — que o grupo destinou para seu programa de construção de túneis e fabricação de armas, para ser capaz de controlar Gaza eternamente.

Bibi queria que o Hamas “governasse Gaza”, não a Autoridade Palestina na Cisjordânia, para que os palestinos permanecessem divididos e nunca pudessem ser parceiros em uma solução de dois Estados — o objetivo de todos os presidentes americanos desde George H.W. Bush.

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E a razão pela qual Netanyahu se recusou a definir uma liderança alternativa para Gaza é que ele sabe que a única alternativa crível é uma Autoridade Palestina reformada, mas que a extrema direita em Israel derrubará seu governo se ele concordar com tal solução.

Então, por favor, não me venham com a ideia de que tudo, exceto uma limpeza étnica, já foi tentado de boa-fé por ambos os lados.

Se Trump realmente pretende ocasionar uma mudança radical e tirar vantagem de parte do medo que ele incute nas pessoas, não será com essa proposta imatura de “Mar-a-Gaza”. Isso só seria possível se Trump convocasse publicamente todas as partes e desafiasse cada uma delas a verdadeiramente e de boa-fé fazer o trabalho duro necessário para sair desse inferno.

Seria necessário dizer à Autoridade Palestina que, se quiser governar Gaza, a entidade precisa empossar um novo líder não corrupto e um novo primeiro-ministro eficiente — como o ex-primeiro-ministro Salam Fayyad — imediatamente. Essa Autoridade Palestina reformada precisa então criar um gabinete de tecnocratas para convidar uma força de paz árabe para assumir Gaza, concluir a expulsão da liderança do Hamas e solicitar a assistência internacional necessária para a reconstrução de Gaza. Essa força árabe também teria de se comprometer a treinar uma força de segurança da Autoridade Palestina para a entidade se tornar capaz, eventualmente, de governar Gaza por conta própria, com ajuda dos árabes.

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Palestinos colocam roupa para secar em meio aos escombros. Foto: Saher Alghorra/The New York Times

E seria necessário dizer a Netanyahu que, assim que a força de paz árabe estiver formada e operante, Gaza será dividida em Áreas A e B. A Autoridade Palestina e a força de paz árabe governarão a Área A — todos os centros populacionais — e o Exército israelense pode permanecer em todo o perímetro — a Área B — por vários anos. Depois disso, os palestinos realizam eleições na Cisjordânia e em Gaza e negociam uma solução de dois Estados com Israel para ambos os territórios. Uma vez que esse processo estiver em andamento, a Arábia Saudita normaliza as relações com Israel, e o acordo de segurança EUA-Arábia Saudita pode ir adiante.

Cedo ou tarde, Trump pode aprender o seguinte: os interesses dos EUA e os interesses de Netanyahu não estão alinhados. O interesse de Bibi é usar qualquer pretexto para permanecer no poder, não importando se isso significa postergar a libertação dos reféns, travar uma guerra eterna ou abandonar a perspectiva de uma normalização histórica das relações entre o Estado judaico e a Arábia Saudita. Netanyahu chegou a dizer outro dia que “os sauditas podem criar um Estado palestino na Arábia Saudita; eles têm muito território por lá”, desencadeando uma dura resposta saudita.

Será que Trump vai despertar e perceber o quanto Netanyahu e os supremacistas judeus em Israel o veem como um trouxa ao seu dispor?

Praticamente todo o establishment de segurança em Israel está em pé de guerra pelo fato de Netanyahu ter se recusado a definir um plano para transformar a vitória militar de Israel em Gaza numa vitória política sustentável. Vejam, então, o que Bibi disse à Knesset esta semana: “A visão de Trump é nova, criativa, revolucionária; e ele está determinado a implementá-la. Vocês falaram sobre o ‘dia seguinte’ (o plano para Gaza) — vocês conseguiram seu ‘dia seguinte’! Só que ele não condiz com a visão de Oslo, porque nós não repetiremos esse erro”. Bibi está simplesmente usando Trump para ganhar mais tempo, a caminho do nada.

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Se Bibi chegar aonde está indo, todo jovem judeu hoje aprenderá o que é crescer em um mundo onde o Estado judaico é um Estado pária.

Presidente Trump, eu lhe repito: há um argumento verdadeiro para o senhor reformular seu pensamento sobre esse problema. Mas seu plano para um “Mar-a-Gaza” não é um novo pensamento. É um novo estribilho. Sua proposta não passa de conceitos amalucados de um plano de paz lançado sem checagem por seus conselheiros ou aliados, cujos detalhes o senhor muda todos os dias, forçando seus conselheiros bobbleheads a concordarem vigorosamente — sem nenhuma consideração aos interesses de longo prazo dos EUA ou à sua própria credibilidade. É um plano que amará Israel até a morte, ressuscitará o Irã e desestabilizará todos os amigos dos americanos. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Opinião por Thomas Friedman

É ganhador do Pullitzer e colunista do NYT. Especialista em relações internacionais, escreveu 'De Beirute a Jerusalém'

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