Disputa entre Trump e Biden testa fôlego da ascensão populista no mundo

Especialistas apostam que nova vitória do presidente significaria o fim de alianças que os EUA ainda mantêm com alguns países; de acordo com eles, republicano não vê diferença entre firmar parcerias com líderes democráticos ou autoritários

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Foto do author Beatriz Bulla
Por Beatriz Bulla e Correspondente
Atualização:

WASHINGTON - “Donald Trump é um risco para a democracia?” O título do artigo de Steven Levitsky no jornal The New York Times, em dezembro de 2016, levantava a preocupação sobre o futuro dos EUA no mandato do presidente eleito. Quatro anos depois, a eleição é um teste não só para a resiliência das instituições americanas, mas para a ordem democrática global.

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Em seu mandato, Trump se aproximou de líderes autoritários, como Kim Jong-un, preferiu o isolacionismo ao multilateralismo, rompeu com aliados históricos, conduziu os EUA a um nível de tensão inédito com a China e virou inspiração de adeptos do populismo nacionalista, como Jair Bolsonaro.

“Trump não liga se o país é autoritário ou se é democrático. É uma política muito transacional. Ele não quer uma Europa forte, não gosta da arquitetura multilateral. Um ‘G-zero’ escalaria mais rápido em um segundo mandato de Trump do que em um governo Biden”, diz Ian Bremmer, fundador da consultoria de risco política Eurasia.

Estudantes de Haddonfield, localidade de 11 mil habitantes em New Jersey, durante último debate presidencial Foto: Michelle Gustafson/The New York Times

O conceito de G-zero pressupõe um vácuo de poder no cenário mundial por ausência de um país que paute a agenda internacional e vem sendo apontado por Bremmer há quase uma década. Após a 2.ª Guerra, os EUA tomaram dianteira na reorganização mundial, com a criação da Organização das Nações Unidos (ONU) e do sistema de Bretton Woods. Em um mundo “G-zero”, os EUA passariam longe disso. Sob Trump, também. 

“Trump enfraqueceu o que já vinha enfraquecendo e acelerou o fato de que há hoje poucos líderes no mundo que admiram o sistema político americano e desejam replicá-lo. Muito do ‘soft power’ dos EUA foi corroído”, afirma Bremmer. A instituição americana Freedom House aponta o papel do “retorno da rivalidade entre grandes potências” e da “nítida falta de liderança na governança democrática de defensores tradicionais como os EUA” na deterioração da democracia mundial.

Thomas Wright, diretor do centro de EUA e Europa do centro de estudos Brookings, sustenta em artigo que, se Trump ganhar, os próximos quatro anos serão mais disruptivos para a ordem global do que os últimos quatro. “Ao confirmar que os EUA rejeitaram seu papel de liderança tradicional, um segundo mandato de Trump causaria impacto duradouro na direita mundial em um momento vulnerável. As alianças dos EUA provavelmente desmoronariam, a economia global fecharia e a democracia e os direitos humanos entrariam em declínio rápido.” 

Trump entrou em atrito com França e Alemanha e retirou o país de boa parte dos fóruns e tratados multilaterais dos quais os americanos foram protagonistas. Na lista estão o acordo nuclear com o Irã, o acordo climático de Paris, a paralisação do órgão de apelações da Organização Mundial do Comércio (OMC) e o anúncio durante a pandemia do coronavírus de que os EUA sairão da Organização Mundial da Saúde (OMS).

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Seu desprezo pelas soluções multilaterais é explícito nos discursos e nas imagens do presidente em encontros entre potências, como a foto da reunião do G-7 no qual Trump encarava os demais líderes de braços cruzados e cara fechada. Ex-assessores que deixaram o governo, como o ex-conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, traçam a imagem de Trump como um presidente que não se interessa por geopolítica e toma decisões que influenciam os rumos do mundo motivado por ambições eleitorais.

Steven Levistky, autor do livro Como as democracias morrem, vê no fato de os americanos deixarem de ser modelo para o restante do mundo um vácuo que dá espaço a governos não democráticos. “Estamos mais próximos de uma vergonha mundial do que de um modelo mundial”, diz. “Trump basicamente parou de promover democratas para abertamente apoiar autocratas.” 

Para ele, o fato de Trump ter se alinhado a países como Índia, Hungria e Rússia, em detrimento de relações com Alemanha e França, por exemplo, tem grande impacto sobre o liberalismo global. Reconstruir canais com aliados europeus e recolocar o país na mesa dos debates multilaterais – e em pactos como o Acordo de Paris – está entre as prioridades de um eventual governo de Joe Biden, que promete discutir temas como resposta à pandemia e mudanças climáticas de maneira conjunta. 

“É preciso lembrar que os líderes mundiais não gostam de Trump. Alguns fingem que gostam. Outros não. A maioria ficará muito feliz se Trump perder”, diz Bremmer. Mas, mesmo antes de Trump, diz, os EUA já vinham reduzindo seu protagonismo no palco mundial. 

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Já a escalada de tensão com a China permanece em um eventual governo Biden. Mais de 70% dos americanos veem de maneira negativa as relações com o gigante asiático. Embora a percepção seja pior entre republicanos, os democratas também têm visão desfavorável sobre o país.

Um dos conselheiros da campanha democrata para política externa afirma que a pressão sobre temas de tecnologia, comércio e direitos humanos continuará, mas Biden terá abordagem menos isolada no confronto com a China. Entre as promessas de política externa não cumpridas por Trump estão o muro com o México e a redução do déficit comercial com a China. Mas Trump deu resposta aos apelos de sua base eleitoral. 

“Ele reduziu a imigração, buscou trazer as tropas militares de volta e pressionou aliados a gastar mais em defesa”, afirma o especialista. “Trump foi consistente no que propôs para sua política externa”, diz Bremmer. “Mas também causou muitos prejuízos.”

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