Europa mantém requerentes de asilo à distância; desta vez, em Ruanda

União Europeia está finalizando novo acordo com país africano para que imigrantes que hoje se encontram na Líbia sejam transferidos, assim como a própria Líbia e a Turquia fizeram no passado

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Por Matina Stevis-Gridneff
Atualização:

BRUXELAS - Há três anos, a União Europeia vem pagando outros países para manter os requerentes de asilo longe de uma Europa repleta de partidos populistas e anti-imigrantes.

A Turquia recebeu bilhões de dólares para impedir que refugiados cruzem a fronteira para a Grécia. A Guarda Costeira Líbia tem sido financiada para caçar e mandar de volta os barcos com imigrantes para o Norte da África. E a U.E. criou centros na Nigéria para processar os pedidos de asilo, se eles chegarem a ser feitos.

Imigrantes a bordo de navio de resgate holandês na costa da ilha de Malta, em janeiro de 2019 Foto: Sergey Ponomarev/The New York Times

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Muitos não o fazem. Mesmo com essa rede criada recebendo críticas com base em razões humanitárias, ela já está sobrecarregada a ponto de a União Europeia buscar expandi-la para reforçar uma estratégia que reduziu drasticamente o número de imigrantes cruzando o Mediterrâneo.

A UE está finalizando um acordo, desta vez com Ruanda, para criar um novo centro que, espera, abrandará algumas das pressões que vêm se acumulando na sua rede terceirizada.

Para os críticos, o acordo firmado com Ruanda aprofundará uma política moralmente arriscada, mesmo que ele deixe claro o quão precário se tornou o sistema adotado pela UE para administrar a crise migratória.

Dezenas de milhares de migrantes e requerentes de asilo permanecem retidos na Líbia, onde um emaranhado de milícias controla os centros de detenção e migrantes são vendidos como escravos ou são levados à prostituição, mantidos em lugares tão congestionados que não existe nem mesmo espaço para dormir.

A explosão de uma bomba em um centro de detenção em julho deixou 40 pessoas mortas, mas o centro continua em operação, mesmo com uma parte dele reduzida a escombros.

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Mesmo com as falhas do sistema, poucas pessoas no Ocidente prestam muita atenção, e segundo os críticos é parte do objetivo manter um problema que tem agitado a política europeia do outro lado das águas mediterrâneas fora da vista e da mente.

Monitorar os requerentes de asilo em lugares remotos e seguros - onde podem se candidatar como refugiados sem empreender as arriscadas travessias na direção da Europa - tem sido promovido em Bruxelas como uma maneira de desmantelar as redes de contrabandistas e ao mesmo tempo oferecer às pessoas vulneráveis uma chance justa a uma nova vida.

Imigrantes em refúgio da ONU em Niamey, Níger, em janeiro de 2018 Foto: Dmitry Kostyukov/The New York Times

Mas existem falhas fundamentais: os centros criados fora da Europa são exíguos e são muito poucas as promessas de reassentamento. Os populistas europeus continuam a vender a narrativa de que os migrantes estão invadindo o continente, apesar de a política migratória ter reduzido drasticamente o número de novos refugiados que chegam à Europa.

Em 2016, 181,3 mil pessoas cruzaram o Mediterrâneo vindas do Norte da África, chegando às costas italianas. No ano passado o número despencou para 23,4 mil.

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Mas a estratégia do bloco tem sido fortemente criticada por grupos humanitários e de defesa dos direitos dos refugiados, não só pelas condições deploráveis dos centros de detenção, mas também porque os poucos imigrantes mantidos ali não têm nenhuma chance concreta de conseguir asilo.

“Começa a parecer um processo exterior e uma porta dos fundos para os países europeus manterem as pessoas longe da Europa, de uma maneira vagamente diferente de como a Austrália administra o problema”, afirmou Judith Sunderland, da organização Human Rights Office, referindo-se à política australiana de deter os que buscam asilo nas distantes ilhas do Pacífico. 

Tais críticas surgiram na Europa em 2016, quando a União Europeia concordou em pagar à Turquia US$ 6 bilhões para impedir que refugiados cruzassem a fronteira para a Grécia e recebessem de volta os que conseguiram chegar ao país. 

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No caso da África, em particular do lado do Mediterrâneo, os acordos implicaram em um custo menor, mas do ponto de vista moral também alto.

O financiamento por Bruxelas da Guarda Costeira Líbia para interceptar os barcos com imigrantes antes de chegarem a águas internacionais tem sido extremamente eficaz, mas os migrantes apreendidos são vulneráveis a abusos num país africano com escassa governança central e à mercê de um governo de milícias anárquico e em guerra.

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Um grupo de migrantes foi reassentado diretamente na Líbia e outros milhares foram transferidos pela agência de refugiados das Nações Unidas e pela Organização Internacional para Migrações para um centro de processamento na Nigéria. Apenas alguns deles têm uma chance realista de obter asilo na Europa.

Com muitos Estados membros da União Europeia se recusando a aceitar esses migrantes, Bruxelas e o presidente Emmanuel Macron, da França, têm apelado para aqueles com boa vontade para aceitarem os poucos considerados especialmente vulneráveis.

Como a Itália continua a proibir navios de resgate de imigrantes a atracarem nos seus portos e ameaçou impor multas de até um milhão de euros para os que desobedecerem, Macron liderou uma iniciativa entre os membros da União Europeia para ajudar a acomodar os refugiados resgatados no Mediterrâneo. Oito países aderiram. Mas, no final, é uma gota d’água no oceano.

Um número estimado de meio milhão de imigrantes vive na Líbia e somente 51 mil estão registrados na agência de refugiados das Nações Unidas. Cinco mil são mantidos em centros de detenção miseráveis e sem segurança. 

“Os países europeus enfrentam um dilema”, disse Camille Le Coz, especialista do Migration Policy Institute em Bruxelas. “Eles não querem receber mais migrantes da Líbia e temem criar um fator de atração, mas ao mesmo tempo não podem deixar as pessoas presas em centros de detenção”.

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A agência das Nações Unidas e a Organização Internacional para Migrações transferiram quatro mil pessoas para o centro de trânsito na Nigéria nos últimos dois anos.

A Nigéria, um país que há muito tempo serve como elo chave na rota migratória da África para a Europa, abriga alguns dos mais atuantes contrabandistas de pessoas do mundo.

A capacidade do centro de Agadez, onde os contrabandistas também têm sua base de operações, é de mil pessoas. Mas às vezes abriga um número três vezes maior. Catorze países, 10 da União Europeia e mais o Canadá, Noruega, Suíça e Estados Unidos prometeram receber 6,6 mil pessoas, ou diretamente da Líbia ou do centro de detenção na Nigéria, segundo a agência da ONU.

A demora é de dois anos, com alguns casos levando até 12 meses para serem processados, disse uma porta-voz da agência. Países que se comprometeram, como a Bélgica e Finlândia, receberam somente algumas dezenas de pessoas, outros, como a Holanda, menos de 10. Luxemburgo não aceitou nenhum refugiado, de acordo com dados da agência da ONU para refugiados.

Com base no acordo com Ruanda, que deve ser assinado nas próximas semanas, o país africano acolherá 500 migrantes evacuados da Líbia e os manterá até serem reacomodados em novas casas ou enviados de volta para seus países de origem. 

Será uma maneira de alguns saírem da penosa situação, mas o centro em Ruanda deverá enfrentar os mesmos atrasos e problemas como o de Agadez.

“O programa no caso da Nigéria sofreu uma série de revezes, hesitações, um processo muito lento por parte da União Europeia e outros países, e o número de reassentamentos na verdade é muito pequeno”, disse Sunderland. “Não há muita esperança de que o mesmo processo em Ruanda produza resultados radicalmente diferentes”. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

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