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Fã de ioga, brasileira ganha cruz em Manágua

Amigos de Raynéia Gabrielle Lima dizem que ela reclamou da violência pelo WhatsApp no começo do mês, por ser estrangeira, não se envolvia com o movimento contrário ao presidente Daniel Ortega

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Por Maryórit Guevara e Manágua

MANÁGUA - É terça-feira à tarde. Uma Devi chora desconsolada em uma das principais rotatórias de Manágua, onde foi erguido uma espécie de monumento em homenagem às mais de 300 pessoas mortas desde o início dos protestos, em abril, contra o governo do presidente Daniel Ortega e a mulher dele, a vice-presidente Rosario Murillo.

A chamada sociedade autoconvocada tem colocado uma cruz para cada morto durante os últimos três meses. Colocaram uma cruz pela vida da brasileira Raynéia Gabrielle da Costa Lima, de 31 anos, morta em circunstâncias ainda não esclarecidas.

Colegas e amigos de Raynéia homenageiam estudante em Manágua; cruzes lembram vítimas no país Foto: EFE/Esteban Biba

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Uma não está sozinha, a acompanham cerca de 30 pessoas que estão no local para protestar pelo assassinato, que atribuem a grupos paramilitares financiados pelo governo. Ela chora e abraça duas amigas, que conheceram a brasileira por causa da ioga, um exercício que poucos praticam na Nicarágua, atormentada pela repressão do governo.

“Nos conhecemos três anos atrás. Era uma grande pessoa, muito espiritual. Era uma das alunas mais ativas do movimento ioga urbana na Nicarágua. Ela tinha muita ânsia de viver. Tinha um sentido de espiritualidade profundo”, diz Uma entre soluços enquanto se une em um abraço com as amigas.

Raynéia chegou em 2013 à Nicarágua acompanhando seu ex-namorado, que trabalhava no projeto hidrelétrico Tumarín em Matagalpa, um megaprojeto hidrelétrico anunciado efusivamente em 2016, mas que acabou abandonado após o governo brasileiro suspender os fundos para a empresa Eletrobrás.

Atraída pelos lagos e vulcões, a jovem brasileira decidiu ficar na Nicarágua com intenção de estudar em uma universidade - oportunidade que não tinha em seu Estado natal, Pernambuco.

“Ela chegou e se apresentou como brasileira. Era divertida. Gostava muito de falar em espanhol e uma das coisas que sempre nos encantou foi seu sotaque, o modo como pronunciava as palavras ‘nicas’ (gírias locais)”, lembra Carlos Blandón, que estudou com Raynéia os seis anos do curso de Medicina na Universidade Americana (UAM).

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A jovem era conhecida por sua disciplina e responsabilidade nas aulas. “Era muito difícil ela deixar de fazer algum trabalho”, diz Carlos, destacando o espírito empreendedor da brasileira que, para manter seus estudos, vendia brigadeiros, além de trabalhar como modelo em eventos e com diferentes agências.

“Era muito dedicada. Gostava de trabalhar como modelo e com seus doces conseguia pagar a universidade. Sua rotina era de estudo e trabalho. Era uma das melhores alunas da sala. Amava a medicina. Seu sonho era se especializar em pediatria”, afirma o colega.

Raynéia fazia residência no Hospital Carlos Roberto Huembes, da Polícia da Nicarágua e se formaria em fevereiro em Medicina. O diploma foi emitido na semana passada à pernambucana pela universidade em que ela estudava, em uma cerimônia organizada pela direção e os estudantes da instituição. 

Sobre seu caráter, os amigos destacam seu positivismo, alegria, carinho e atenção, especialmente com os pacientes, com quem tinha longas conversas.

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Em declarações aos meios de comunicação, o doutor Ernesto Medina, reitor da Universidade Americana, negou que Raynéia estivesse vinculada aos protestos estudantis. Ele também disse que a brasileira não integrava as brigadas de auxílio médico, que são perseguidas e detidas pelo governo. “Por sua condição de estrangeira, estou certo de que ela nunca teve nada a ver com os protestos”, disse Medina, confirmando que a jovem era uma excelente estudante. Seus colegas de classe e médicos também afirmam que Raynéia não estava envolvida nos protestos.

Eles lembram que na noite do dia 13, quando grupos paramilitares e policiais atacaram estudantes entrincheirados na Universidade Nacional Autônoma da Nicarágua (UNAN), nas imediações de Lomas de Montserrat, onde ela vivia, Raynéia disse pelo WhatsApp que estava com medo por causa dos tiros.

“O único que ela falou no grupo de WhatsApp era ‘tenho medo, muito medo. Se escuta muito alto, dá para escutar que o negócio está feio’, mas ela não esteve envolvida em nada, ainda mais por ser estrangeira”, disse um colega médico que preferiu não revelar seu nome.

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Diante do temor de represálias e a falta de garantias de segurança no país centro-americano, ninguém quer dar informações sobre o incidente no qual Raynéia perdeu a vida e pelo qual a polícia deteve um homem que ela diz ser um segurança privado, sem dar detalhes sobre o que ocorreu na noite do dia 23, quando, ironicamente, a Nicarágua comemorou o Dia Nacional do Estudante.

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