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Sem água, sem comida: a luta dos palestinos por itens básicos em Rafah

A maior parte da população da Faixa de Gaza fugiu para Rafah, no sul do território, esperando escapar da guerra. Enquanto os palestinos buscam alimento e abrigo, a possibilidade de uma invasão israelense apavora as pessoas

Por Bilal Shbair (The New York Times) e Ben Hubbard (The New York Times)

O medo tem aumentado há semanas. Mais de 1 milhão de palestinos fugiram para Rafah, a região mais ao sul na Faixa de Gaza, com esperança de escapar da guerra. Agora, Israel ameaça estender sua invasão também até lá.

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Em meio a dias repletos de dificuldades para obter alimentos, água e abrigo, a incerteza domina as conversas das pessoas, afirmou o assistente social Khalid Shurrab, que se abriga com a família em uma barraca furada em Rafah.

“Nós temos duas opções: permanecer como estamos ou encarar nosso destino — a morte”, afirmou Shurrab, de 36 anos. “As pessoas literalmente não têm outro lugar seguro para ir.”

Rafah, que até aqui foi poupada do impacto maior da ofensiva de Israel, tornou-se um novo ponto focal da guerra atualmente em seu sexto mês. A maior parte dos 2,2 milhões de habitantes de Gaza rumou para a localidade, multiplicando a população da região e exaurindo seus limitados recursos.

Palestinos aguardam em fila para encher recipientes com água em Rafah, no sul da Faixa de Gaza, em 17 de março de 2024, em meio a batalhas em andamento entre Israel e o grupo militante Hamas Foto: SAID KHATIB / AFP

E agora, com Israel sinalizando intenção de perseguir militantes do Hamas em Rafah e o Egito bloqueando a passagem da maioria dos palestinos para o sul, as famílias temem estar encurraladas.

Na Municipalidade de Rafah, lar de menos de 300 mil pessoas antes da guerra, o espaço tornou-se um artigo raro. Famílias deslocadas lotam escolas, acampamentos se espalham sobre terrenos anteriormente vazios e pedestres acotovelam-se nas ruas.

Gás de cozinha é tão escasso que o ar fica impregnado pelo odor da fumaça de pneus, madeira e pedaços de móveis queimando. O combustível é caro, então as pessoas caminham, usam bicicletas ou carroças puxadas por burros ou cavalos. Já que faz fronteira com o Egito, de onde entra a maioria da ajuda a Gaza, Rafah recebe a maior parte dos suprimentos que entram no território.

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Ainda assim, muitos moradores estão tão desesperados que jogam pedras contra caminhões de ajuda para tentar fazê-los parar ou avançam em grupo para tentar pegar o que puderem. Centenas de pessoas foram mortas e feridas durante um tumulto em que israelenses abriram fogo quando um comboio de caminhões tentava entregar ajuda na Cidade de Gaza, no norte do território, no mês passado.

Latinhas vazias de feijão estão espalhadas por uma duna de areia com vista para um acampamento de pessoas deslocadas em Rafah, no sul da Faixa de Gaza, em 17 de março de 2024  Foto: MOHAMMED ABED / AFP

A maioria das pessoas que se abriga em Rafah passa os dias tentando atender às necessidades básicas: encontrar água limpa para beber e tomar banho, conseguir comida suficiente e acalmar os filhos quando os ataques israelenses atingem as proximidades.

“Tudo é difícil aqui”, afirmou Hadeel Abu Sharek, de 24 anos, que está abrigada em um restaurante fechado com sua filha de 3 anos e outros parentes, em Rafah. “Nossos sonhos foram esmagados. Nossa vida virou um pesadelo.”

Sua família normalmente só consegue encontrar comida suficiente para uma refeição por dia, afirmou ela, e mesmo que a água sempre seja fervida antes de beber, muitos ficaram doentes, incluindo a filha dela. Não existe um lugar para obter medicamentos facilmente.

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“Os bombardeios são assustadores, especialmente para as crianças”, afirmou ela, acrescentando que todos se juntam em um canto quando ouvem ataques israelenses, temendo que o teto caia.

O restaurante é seu segundo abrigo desde que Hadeel e seus parentes deixaram suas residências no norte de Gaza, no início da guerra. Agora todos terão de se mudar novamente, afirmou ela. O restaurante está expulsando a família, mas lhe deu algumas barras metálicas e tecido à prova d’água para construir uma barraca improvisada.

Os abrigos são tão escassos que o preço dos aluguéis foi às alturas, escolas passaram a funcionar como campos de refugiados e muitas famílias dormem em barracas ou penduram lonas plásticas para se proteger da chuva e do frio.

Meninos aguardam enquanto seguram potes vazios, juntamente com outros palestinos deslocados, esperando na fila para refeições fornecidas por uma organização de caridade antes da quebra do jejum para a refeição "iftar" durante o mês sagrado muçulmano do Ramadã, em Rafah, no sul da Faixa de Gaza, em 16 de março de 2024 Foto: SAID KHATIB / AFP

Pouco após o início da invasão, Ismail al-Afify, um alfaiate do norte de Gaza, montou o acampamento de sua família sob uma escada de concreto em uma escola. Desde então, o edifício ficou repleto de outros refugiados, com até quatro famílias compartilhando uma mesma sala de aula.

Para atender suas necessidades, os filhos de Al-Afify ficam atentos para a passagem de caminhões-pipa ou veículos carregados com itens de ajuda, para que possam correr e tentar conseguir mantimentos ou encher seus baldes com água. Quando há farinha, sua enteada assa pão juntamente com outras mulheres em um forno de argila improvisado na rua.

Al-Afify, de 62 anos, afirmou que frequentemente vai dormir com fome.

Faltas de combustíveis e outros suprimentos quase impedem o funcionamento de instalações médicas.

Em entrevista, Marwan al-Hams, diretor do Hospital Abu Yousef al-Najjar, o maior de Rafah, listou os serviços que não consegue mais prover: cuidado intensivo, cirurgias complexas, tomografias computadorizadas ou ressonâncias magnéticas e tratamentos oncológicos. Falta aos médicos analgésicos e medicamentos para diabetes e pressão alta. Sua capacidade de realizar diálise está tão reduzida que pacientes com doenças renais morreram.

O hospital está lotado, com famílias deslocadas abrigando-se no terreno e nos corredores. Há apenas 63 leitos para cerca de 300 pacientes, afirmou ele. “A gente trata a maioria dos pacientes no chão”, disse.

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Palestinos compram alimentos em um mercado local ao lado de um prédio residencial destruído pelos ataques aéreos israelenses, durante o mês sagrado muçulmano do Ramadã, em Rafah, Faixa de Gaza, quinta-feira, 14 de março de 202  Foto: Fatima Shbair / AP

Nos meses iniciais da guerra, as Forças Armadas israelenses ordenaram repetidamente as pessoas em Gaza a deslocar-se em direção ao sul para sua própria segurança. Mas Israel também atacou Rafah com frequência, matando pessoas e danificando edifícios. Na quarta-feira, forças israelenses atingiram um armazém de suprimentos de ajuda em Rafah, matando um funcionário das Nações Unidas, de acordo com a Agência da ONU de Assistência aos Refugiados da Palestina, o maior grupo de ajuda presente em Gaza.

Grupos de ajuda e autoridades da ONU alertaram que uma invasão a Rafah seria catastrófica para os civis de Gaza, e o presidente Joe Biden classificou esse movimento como um “limite”, mas acrescentou que ajudar Israel a se defender continua “crítico”. O primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, respondeu expressando seu próprio limite: “Que o 7 de Outubro nunca mais volte a acontecer”, afirmou ele, referindo-se ao ataque perpetrado pelo Hamas contra Israel que deu início à guerra. Autoridades israelenses afirmam que cerca de 1,2 mil pessoas foram mortas e cerca de 240, sequestradas e levadas para Gaza.

Prometendo destruir o Hamas, Israel lançou uma campanha de bombardeios e uma invasão que, segundo as autoridades de saúde de Gaza, mataram mais de 31 mil pessoas sem diferenciar entre civis e combatentes.

Em meados de fevereiro, um ataque israelense atingiu a Mesquita de Al-Hoda, em Rafah, derrubando seu telhado e danificando gravemente o edifício, de acordo com meios de imprensa palestinos e Aaed Abu Hasanein, o chefe de rezas do centro religioso. Não ficou claro por que o local foi atacado. Israel acusa o Hamas de usar edifícios civis, como escolas e mesquitas, para atividades terroristas, acusação que o Hamas nega.

O ataque arruinou a maior parte do prédio, afirmou Abu Hasanein. “Como você pode ver, não sobrou nada”, disse ele. “Tudo ruiu.”

Mas as pessoas ainda rezam na mesquita, acrescentou ele. Cabem cerca de 150 pessoas no corredor onde os frequentadores costumavam deixar seus sapatos, a parte menos danificada do edifício. “Este é o local mais seguro e menos chamuscado”, afirmou Abu Hasanein. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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