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Físico preso por terrorismo na França leciona na UFRJ

Acadêmico diz que o processo judicial não reuniu provas contra ele e recebe apoio de colegas da universidade

Por Fabio Grellet
Atualização:

RIO - Condenado pela Justiça da França a cinco anos de prisão sob a acusação de planejar atentados terroristas, o físico Adlène Hicheur, de 39 anos, nascido na Argélia e naturalizado francês, radicado no Brasil hátrês anos, divulgou ontem texto em que diz que o processo judicial não reuniu provas contra ele, apesar da sentença. Ao obter liberdade provisória, após dois anos preso, ele se mudou para o Rio, onde leciona no Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) como professor visitante. "Fui preso pela polícia francesa no fim de 2009 e a única justificativa desta minha detenção foram minhas visitas aos chamados websites islâmicos subversivos. Fui privado da minha liberdade por dois anos apenas com base nisso. Nenhum outro elemento foi apresentado contra mim", afirma ele na carta, encaminhada ao Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). No documento, Hicheur diz que "a acusação não sustentou o caso com fatos e evidências". Segundo ele, "o caso foi fabricado, usando-se partes pinçadas de uma conversa virtual com o objetivo de mostrar que haveria uma tentação de considerar a violência como solução para conflitos internacionais em países árabes e muçulmanos como Iraque ou Afeganistão". O Estado procurou Hicheur ontem na UFRJ, mas ele não estava em seu gabinete. O pesquisador Ignacio Bediaga, que trabalha no CBPF e foi responsável pelo convite ao físico para que viesse trabalhar no Brasil, também divulgou carta em que defende e elogia o colega. "Durante esses quase dois anos de trabalho conjunto, o dr. Hicheur, além de realizar um trabalho excepcional, mostrou um comportamento moral e ético exemplar, bem como uma grande disponibilidade de colaborar com o grupo", escreveu. Especializado em partículas elementares, Hicheur desenvolvia até 2009 uma carreira acadêmica reconhecida internacionalmente. À época, fazia pós-doutorado na Escola Politécnica Federal de Lausanne, na Suíça, e trabalhava no Centro Europeu para Física de Partículas. Foi quando se afastou para tratamento médico devido a problemas na espinha e no nervo ciático. Na casa dos pais, na França, começou a frequentar fórum na internet que reúne jihadistas e trocou mensagens com um interlocutor que se identificava como "Phenix Shadow" - segundo a polícia, era Mustapha Debchi, apontado pelo governo da França como integrante da organização terrorista Al Qaeda. O conteúdo dos e-mails foi divulgado no último fim de semana pela revista "Época". Segundo a publicação, Phenix perguntou a Hicheur se ele estaria disposto a cometer um ataque suicida, e o físico negou. Em seguida, Phenix questionou: "Caro irmão, vamos direto ao ponto: você está disposto a trabalhar em uma unidade de ativação na França? Que tipo de ajuda poderíamos te dar para que isso seja feito? Quais são suas sugestões?" Cinco dias depois, Hicheur respondeu: "Sim, claro" e afirmou que planejava deixar de morar na Europa, mas que poderia rever esse plano. O físico escreveu que ficaria na Europa para "trabalhar no seio da casa do inimigo central e esvaziar o sangue de suas forças" e sugeriu diversos alvos. "Precisamos trabalhar para acelerar a recessão econômica, ou seja, atingir as indústrias vitais do inimigo e as grandes empresas." Hicheur também mencionou ataques a embaixadas: "Executar assassinatos com objetivos bem estudados: personalidades europeias ou personalidades bem definidas que pertençam aos regimes incrédulos (em embaixadas e consulados, por exemplo)." As mensagens foram interceptadas pela polícia francesa, que prendeu o físico. Processado, foi condenado a cinco anos de prisão. Detido em 2009, foi libertado em 2012. No início de 2013 foi convidado pelo CBPF, unidade de pesquisa do Ministério da Educação situado na Urca, zona sul do Rio, para participar de um projeto no Brasil. Durante três meses, com bolsa de estudos do CBPF, fez pesquisas e produziu relatório. Voltou para a Europa, mas a polícia suíça o proibiu de entrar no país até 2018. Por isso, não pode voltar ao local onde trabalhava antes da prisão. Hicheur foi, então, convidado a estender a pesquisa no Brasil, auxiliado por bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Ele teve o currículo aprovado por comissão composta por representantes do Ministério da Educação e do CNPq. Recebeu ajuda mensal de setembro de 2013 a abril de 2015. Simultaneamente, desde julho de 2014, é contratado pela UFRJ. Seu atual contrato termina em julho próximo. Por conta de um episódio ocorrido ano passado na mesquita que frequenta em Vila Isabel, zona norte, o físico virou alvo de investigação da Polícia Federal, que chegou a fazer operação de busca e apreensão em sua casa e em seu gabinete na UFRJ. A investigação foi arquivada. O CNPq informou que, para conceder a bolsa, analisou o currículo acadêmico e o mérito do projeto do qual o físico participaria, e que a condenação de Hicheur nunca foi levada em conta. A UFRJ divulgou que não havia nenhum impedimento legal à contratação do professor.

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Leia a integra da carta do professor sobre o caso:

"A reportagem intitulada “Um terrorista no Brasil”, publicada pela revista ÉPOCA, edição 917 datada de 11/01/2016, é baseada em mentiras e apenas recicla de forma mal feita uma história velha com o objetivo de atacar minha integridade pessoal. O artigo contem várias insinuações incorretas e erros graves que devem ser destacados. Em primeiro lugar, a reportagem ignorou deliberadamente e distorceu três fatos muito importantes: 1) Ao contrário do que foi alegado na matéria, eu entrei no Brasil de forma totalmente oficial _ como um cientista _ após análises detalhadas. Isso incluiu um estudo minucioso sobre o caso das acusações feitas contra mim na França, que foram exploradas de forma maliciosa na reportagem. Não houve nenhum segredo a respeito da minha entrada no Brasil. Não teve nenhum episódio secreto nisso. Desde que eu cheguei aqui, em 2013, tenho feito contribuições úteis para a pesquisa e para o ensino no país. 2) Ao contrário do que sugere a reportagem, eu não tenho nada a ver com o que aconteceu em janeiro de 2015 na Mesquita da Luz, no Rio de Janeiro, quando um desconhecido que nunca havia frequentado aquele lugar, nem voltou a fazê-lo, teria feito um protesto, ação mostrada pela reportagem da TV CNN que estava presente “coincidentemente” naquele local. Eu não estava nem no Brasil naquele dia. Eu estava a Europa de férias visitando a minha família. 3) Ao contrário do que afirma a revista, a Polícia Federal do Brasil não tem nada contra mim. À luz desta matéria, eu me sinto forçado a resumir o que aconteceu comigo desde 2009: O CASO NA FRANÇA (2009) Eu fui preso pela polícia francesa no fim de 2009 e a única justificativa desta minha detenção foram minhas visitas aos chamados websites islâmicos subversivos. Fui privado da minha liberdade por dois anos apenas com base nisso. Nenhum outro elemento foi apresentado contra mim. A acusação estava sustentada em uma alegação feita pela polícia francesa de que um pseudônimo com o qual eu entrei em contato em um site seria um integrante de uma organização terrorista. Assim, segundo a polícia francesa, eu poderia ser acusado de conspirar para cometer atos violentos. Formalmente a acusação foi de “associação com transgressores tendo como intenção cometer atos de terrorismo”. Aqui, eu gostaria de chamar a atenção para certos fatos que foram ignorados pela reportagem da revista Época: • Eu estava muito doente durante todo o período do alegado crime de “associação com transgressores”. Durante seis meses passei por vários hospitais, fui atendido por inúmeros médicos, como fisiologistas e reumatologistas. Finalmente fui para a casa dos meus pais para me recuperar de meus problemas na espinha e do nervo ciático. • A acusação não conseguiu apresentar nenhuma prova material para sustentar seus argumentos. • Não foi apresentada nenhuma prova de intenção de cometer qualquer ato. • Nenhum “ato violento” preciso foi mencionado como objetivo da alegada conspiração • Não foi apresentada nenhuma prova de identidade do chamado pseudônimo, apenas hipóteses mostradas como “informação de fonte confiável”. A acusação não sustentou o caso com fatos e evidências. O caso foi fabricado usando-se partes pinçadas de uma conversa virtual com o objetivo de mostrar que haveria uma tentação de considerar a violência como solução para conflitos internacionais em países árabes e muçulmanos como Iraque ou Afeganistão. Eu tenho constantemente dito que sou inocente e denunciei a minha custódia abusiva e as acusações feitas contra mim. Também rechacei os métodos inapropriados usados para fabricar elementos ou transformar hipóteses em quase certezas. A INVESTIGAÇÃO SUÍÇA Desde que fui empregado pelo governo da Suíça como professor temporário na EPFL (Escola Politécnica Federal de Lausanne) para trabalhar no CERN (Centro Europeu para Física de Partículas) _ e portanto eu passava a maior parte do meu tempo naquele país _ as autoridades suíças decidiram imediatamente abrir um inquérito pedindo às autoridades francesas para que enviassem todas as informações necessárias. A Justiça suíça chegou depois à conclusão de que nenhum dos elementos apresentados poderia significar uma acusação contra mim e que não valeria nem mesmo à pena ir a julgamento. A conclusão do procurador suíço foi de que “não foi possível identificar o autor ou os autores da ofensa alegada” (ver link da matéria publicada pelo jornal “Le Matin”, de janeiro de 2011) http://www.adlenehicheur.fr/press/oc09m11/2011- 01_13_LeMatin_CH.pdf). Mais tarde, em 2013, após a minha libertação, aparentemente a polícia suíça e as autoridades receberam pressão do lado francês para que eu fosse impedido de ter acesso ao CERN e a EPFL prejudicando com isso meu esforço de reconstruir minha vida profissional. A polícia suíça, então, anunciou que durante cinco anos eu não poderia entrar naquele país. Tratou-se de uma decisão administrativa e não judicial ou penal. Uma atitude que contrariava a decisão da Procuradoria-Geral da Suíça e que ignorava o apoio que a comunidade científica me prestava desde o início do caso. APOIO DA COMUNIDADE CIENTÍFICA Desde que as primeiras acusações foram apresentadas contra mim e eu fui preso, recebi recebi apoio não somente da comunidade científica, mas de entidades da sociedade civil locais e internacionais. Os físicos Jean-Pierre Lees, Monica Pepe-Altarelli e Jean-Pierre Merlo criaram um Comitê Internacional de Apoio que contou com a adesão de centenas de pessoas. Tive o apoio, inclusive, de Jack Steinberger, Prêmio Nobel de Física, e de Jean Ziegler, vicepresidente da comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos (http://soutien.hicheur.pagesperso-orange.fr/). Este comitê enviou regularmente cartas para autoridades francesas pedindo a minha libertação e cobrando um tratamento justo para o meu caso, mas sem sucesso. Um comitê local de apoio na França foi também criado e reuniu milhares de assinaturas pedindo a minha libertação e o fim dos abusos (http://www.adlenehicheur.fr/) JULGAMENTO E LIBERTAÇÃO Aqueles que assistiram o julgamento (entre eles físicos e representantes da sociedade civil) ficaram chocados com as manipulações e os argumentos vazios apresentados pela acusação. Ao contrário do que a revista brasileira publicou na sua reportagem, todas estas pessoas que assistiram o julgamento estavam perfeitamente cientes de todos os detalhes apresentados pela acusação. Por exemplo, Dominique Boutigny, atual director do French High Energy Computing Center (Centro Francês de Computação para Física de Altas Energias) escreveu relatórios denunciando isto: http://sortirdediaspar.blogspot.fr/2012/03/adlenehicheur- et-les-lois-dexception.html). O relatório sobre a decisão final pode ser visto neste link: http://sortirdediaspar.blogspot.fr/2012/05/adlenehicheur- verdict.html E o relatório sobre a minha libertação, neste outro link: http://sortirdediaspar.blogspot.fr/2012/05/adlenehicheur- libre.html HOJE Eu conto até hoje com o apoio de integrantes da comunidade científica que me ajudaram para que eu pudesse voltar a atuar na minha área de especialização. Tenho lutado para me recuperar desta terrível experiência, apesar de todos os obstáculos e das perseguições que estão sendo feitas. Finalmente eu tive sucesso em conseguir voltar a atuar na área da Física de Partículas através de instituições brasileiras como o CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisas Física) e o Instituto de Física da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), contando com o apoio de muitos de seus professores e pesquisadores. Eu consegui voltar a fazer análises em Física de Partículas e a publicar artigos acadêmicos, voltei a contribuir para a organização de conferências, voltei a dar aulas e propus novas ideias nos campos da pesquisa e do ensino. A reportagem da revista Época é uma tentativa desonesta de destruir a minha pessoa. Portanto, peço a todos aqueles que tenham noção de responsabilidade e de ética a condenar firmemente este artigo e a sua intenção de me denegrir."

Adlène Hicheur

Professor Visitan

Leia a íntegra da resposta da UFRJ sobre o caso

"Como colaboradores da experiência LHCb no CERN, acompanhamos desde o início toda a

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problemática envolvendo a prisão do Dr. Hicheur em 2009, então pós-doutorando do instituto de física da prestigiosa École Polytechnique Fédérale de Lausanne (EPFL). À época da sua prisão, pudemos observar que as opiniões dos nossos colaboradores europeus fcaram divididas com relação à legalidade e à legitimidade do arresto. Entretanto, após dois anos de encarceramento, sem acusação defnida, houve um consenso entre os nossos colegas da arbitrariedade da ação da polícia francesa e do próprio julgamento. Houveram várias manifestações individuais e coletivas, muitos artigos em jornais e revistas de toda a natureza, inclusive em três edições da revista Nature, apareceram artigos específcos sobre a prisão do Dr. Adlene. Este material esta bem documentado no web site: http://soutien.hicheur.pagesperso-orange.fr/. Na ocasião da soltura do Dr. Hicheur, fnal de 2012, nós, do grupo do CBPF, associados ao grupo do Instituto de Física da UFRJ, estávamos trabalhando na análise dos dados do LHCb, coletados em 2010 e 2011. O nosso projeto consistia na busca de assimetria matéria anti-matéria, em desintegrações do méson B em três corpos. Este projeto se dividia em três analises interligadas entre elas. Entretanto, devido à complexidade e quantidade de trabalho, somente estávamos conseguindo realizar duas destas e já estávamos na fnal da coleta dos dados de 2012, portanto teríamos terminar as análises para agregar os novos dados. Foi então que o coordenador geral do LHCb à época, Prof. Campana, entrou em contato com agente propondo que o Dr. Hicheur viesse para nos auxiliar nas nossas análises. Conhecedores da capacidade intelectual do Dr. Hicheur, bem como da sua capacidade de trabalho, aliado à necessidade que tínhamos de terminar as análises dos dados de 2010 e 2011, achamos bem interessante a proposta feita pelo manager do experimento. Como também sabíamos da sua condição de condenado, solicitamos à direção do CBPF na época que fzesse uma consulta sobre se haveria algum impedimento legal para a vinda do Dr. Hicheur ao Brasil. Essa consulta foi feita a um embaixador brasileiro e a resposta foi negativa, já que ele era cidadão francês e já havia cumprido a pena. Além disso solicitamos cartas de recomendação ao diretor do instituto de física do EPFL, ao supervisor imediato do Dr. Hicheur neste instituto e fnalmente ao diretor do instituto onde ele havia concluído o doutorado o Laboratoire d’Annecy le Vieux de Physique de Particules (LAPP). Os três professores enviaram cartas de recomendação entusiasmadas, mostrando satisfação com a possibilidade do Dr. Hicheur retomar a vida científca, tragicamente interrompida. O acordo que fzemos com o Dr. Hicheur era que, ao fnal dos três meses de bolsa que havíamos conseguido dentro do CBPF, ele apresentasse um memorando com os resultados preliminares da análise que lhe foi designada. Ao fnal dos três meses ele apresentou o trabalho completo que deveria ser encaminhado e discutido com o restante da colaboração, como de praxe. Ele voltou ao CERN em março de 2013, onde participou dos debates da colaboração sobre o trabalho de análise que ele tinha liderado, que teve a sua aprovação fnal, por parte da colaboração ainda em meados de 2013. Esse trabalho foi publicado na revista Physical Review. Este envolvimento excepcional no grupo, com resultados de altíssima qualidade, nos motivou a propor que, ao fnal do seu estagio no CERN, ele voltasse ao CBPF com uma bolsa para o período de um ano. O seu projeto seria de realizar a mesma análise, agrupando os dados coletados de 2010, 2011 e 2012, com uma estatística três vezes maior que no trabalho anterior. Com base nisso, ele solicitou um visto de um ano no consulado brasileiro em Genebra, que lhe foi concedido em julho deste mesmo ano. Ao chegar de volta ao Brasil, iniciou imediatamente o seu trabalho que foi concluído com sucesso e publicado no Physical Review Letters em meados de 2014, quando teve fm o seu estágio de pós doutorado no CBPF e foi para a UFRJ como professor visitante. Podemos atestar, que durante estes quase dois anos de trabalho conjunto, o Dr. Hicheur, além de realizar um trabalho excepcional, mostrou um comportamento moral e ético exemplar, bem como uma grande disponibilidade de colaborar com o grupo. Em nenhum momento houve da nossa parte, alguma percepção de desvio de conduta da sua parte. A matéria veiculada pela revista Época nesta semana, além de um covarde ataque a uma pessoa com parcas possibilidades de se defender, presta um grande desserviço a ciência brasileira.

Ignacio Bediaga Coordenador do LHCb no

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